Aline Blaya: O medo já não nos assusta. Ao contrário, nos convoca a agir contra a violência. Não recuaremos!

O medo não me assusta

Por Aline Blaya Martins*

Quando eu era pequena, ao contrário da maioria das crianças, meu referencial de cuidado vinha em grande parte da figura masculina, embora minha mãe tenha sido sempre uma leoa que me ensinou a seguir seus passos. Tive sorte, muita sorte. Sigo tendo.

Contudo, muitas vezes esse cuidado fez zero sentido para mim e me ensinou a ser a feminista que sou. Mas, eram outros tempos.

Eu, criança, não podia pintar as unhas, não podia usar batom, não podia dormir fora de casa, precisava estar atenta à forma de sentar e só podia discutir com meu pai se não chorasse.

Ainda não é tarefa fácil não chorar ao discutir com ele, embora não o façamos mais.

E hoje já entendo o quanto ele fez tudo isso na intenção de me fazer aprender que era fácil massacrar uma mulher que se mostrasse frágil.

Todas poderiam ser massacradas, mas o mundo seria ainda mais perverso caso eu não aprendesse a ser forte. 

Aprendi com ele que tudo o que dissermos, usarmos ou fizermos com nossos corpos será usado como argumento para opressão e violência.

Eu odiava as restrições impostas pelo meu pai e parte de mim ainda odeia ter passado por elas.

Mas, hoje, minhas filhas pouquíssimas vezes dormem fora de casa e fazem jiu-jitsu quase como uma imposição tão grande quanto a de ir à escola.

Como dizia Elis Regina, depois de tudo, vejo que ainda sou a mesma e que sigo vivendo como meu pai.

Meu pai é um dos orgulhos da minha vida. Antes de criarem o Sistema Único de Saúde, ele, ginecologista, já lutava contra as barbáries impostas às mulheres, e, principalmente, às meninas, crianças e adolescentes, violentadas, abusadas, engravidadas, abandonadas…

Trabalhou em grandes hospitais, em centros de referência, fazendo políticas públicas, em escolas, em pesquisas, em organizações não governamentais…

Era fim dos anos 80, década de 90, o país em efervescência, e ele aproveitava todas as oportunidades. Carregava a companheira, carregava a filha…

Deu todos os murros possíveis e impossíveis em todas as pontas de faca, fez muitas coisas, com muitas pessoas, algumas inimizades, mas acho que inspirou muita gente também.

Creio que “salvou”, cuidou e amparou mulheres e meninas postas diante de seus piores pesadelos. Poucas vezes vi, mas, tenho certeza de que algumas vezes chorou sozinho pelos horrores que viu e ouviu.

Como eu.

Ironias da vida, tenho irmãos parecidos com ele, mas, coube a mim, a alegria e a dor de seguir seus passos sem nunca ter programado este caminho.

Eu sou dentista. Mas, antes de ser dentista, sou mulher, feminista, mãe de meninas, sanitarista, militante e pesquisadora da saúde coletiva e do SUS, amiga e colega de pessoas, muitas delas mulheres, inspiradoras, que lutam por uma sociedade mais justa, menos desigual e menos opressora, violenta e assassina.

Neste caminho, por coisas da vida, cheguei às pesquisas e à escuta da violência de gênero, como meu velho.

Eu e uma das minhas mestrandas envolvidas com o tema resolvemos pesquisar justo violência sexual contra crianças e adolescentes no Rio Grande do Sul.

Justo quando uma menina é impedida de fazer um aborto legal em uma gestação decorrente de um estupro, justo quando uma mulher é massacrada por dar para a adoção um filho gerado por um estupro, justo quando…

Vejo que os horrores vistos pelo meu pai ainda parecem ser os mesmos.

E dói, como dói. Meu pai queria muito evitar que a sua menina visse aqueles horrores, queria que passasse muito longe de tudo aquilo e por muito tempo conseguiu com sucesso.

Mas, o problema é que tudo isso nunca foi e nunca será sobre mim, ou sobre as minhas amigas, ou sobre as minhas filhas, ou sobre as amigas delas.

O problema é que ele jamais poderia impedir que eu visse ou sofresse uma violência.

Costumo dizer:

Não sei quando ou a gravidade, mas minhas filhas serão vítimas de violência de gênero. Todas nós já fomos, somos, ou seremos, mesmo que não queiramos admitir. Por isso é que precisamos estar preparadas para quando chegar.

Estamos falando de um problema social grave, absurdo e que naturalizamos.

A educação acha que é problema da saúde, a saúde acha que é problema de polícia e a polícia acha que o problema é do judiciário. O judiciário devolve o problema para quem?

— Você acha que o pai do bebê concordaria com a entrega para adoção?

Esta foi a pergunta que uma juíza fez para a menina vítima de um estupro, da idade da minha filha, 11 anos, que foi arrancada dos braços da mãe e aterrorizada por tortura psicológica depois da física já impetrada.

Todavia, também não é sobre essa menina.

No trabalho da Samara, minha mestranda, estudamos 11.099 casos de violência sexual notificados no Sistema de Informação de Agravos e Notificações (SINAN) de janeiro de 2014 a dezembro de 2018.

Destes, a esmagadora maioria, 8.716, foi em crianças e adolescentes.

A grande maioria notificada na capital do estado.

A grandíssima maioria notificada no hospital em que meu pai atuou por muitos anos na década de 80 e que segue sendo referência materno infantil para todo o RS, mesmo com todos os ataques e mesmo tendo setores vitais terceirizados e entregue à iniciativa privada.

Mas a perversidade não se encerra por aí.

E eu sigo dizendo que não é sobre mim, sobre o meu pai, nem sobre a menina estuprada ou sobre estas quase 9 mil notificações porque o problema que temos é coletivo, é civilizatório, e está muito longe de ser resolvido.

Na pesquisa da Samara observamos que boa parte das notificações feitas era de reincidência da violência sexual e que quando as vítimas eram meninas negras as violências costumavam ser mais graves, frequentemente estupros, estupros coletivos e de repetição.

E o pior, sabemos que isso é só a ponta do iceberg. Muitos municípios não têm nenhuma notificação, praticamente não há notificações vindas da atenção básica e os números são infinitamente menores do que os dos boletins de ocorrência, dos conselhos tutelares ou dos núcleos de assistência à criança e ao adolescente.

Informalmente, ficamos sabendo que, enquanto localizamos 32 casos nos registros do SUS em mais de 4 anos, em uma cidade de grande porte do interior do RS, em apenas um ano 170 famílias buscaram atendimento no núcleo de atenção à criança e ao adolescente por violência sexual.

Ou seja, em quatro anos teriam sido 680 casos contra 32 e os números dos boletins de ocorrência são muito maiores.

Por que tamanha diferença?

Violências exigem notificação compulsória. Mas só são notificados ao SUS os casos muito graves fisicamente, que levam à emergência, ao hospital.

Pensemos na pandemia e antes dela. Milhares de crianças presas, em cárcere privado com abusadores.

Milhares de crianças, em sua maioria meninas, amordaçadas, vivendo seus pesadelos todos os dias sem jamais poder dividir com ninguém.

Falhamos, falhamos e seguimos falhando.

Mas já não podemos falhar mais, não aceito, não consigo.

A violência sexual e a submissão dos corpos femininos é um dos maiores símbolos da guerra.

Foi usado pelos colonizadores europeus com as mulheres dos povos originários na América Latina, foi usado pelos senhores de escravos e feitores, foi usado no Vietnã pelos soldados americanos, no Haiti pelos brasileiros… E nos compadecemos com a guerra da Ucrânia.

Veja bem, camarada, nossas meninas vivem em guerra, todos os dias, milhares delas, sejam elas brancas, indígenas, negras, ricas e pobres.

Mas, se elas forem meninas, pretas/indígenas e pobres, serão consideradas a carne mais barata do mercado para a manutenção da pedagogia do medo, do terror, e nós não estamos fazendo nada. E nós esperamos que elas façam alguma coisa.

Não há respostas individuais para problemas coletivos.

Meu pai pouco faz sozinho, eu também pouco posso fazer, da mesma forma a Samara.

Mas, nós juntos, podemos. Muito já fizemos e seguiremos fazendo.

Precisamos fazer.

As mulheres há séculos vêm fazendo, mas não podem fazer sozinhas. As mulheres vêm há séculos lutando, se organizando.

Mas quando eu era criança tinha a impressão de que não sabiam de sua força, mas hoje sei que elas sabem, sabemos, estamos mais fortes e unidas.

Parem de nos matar, parem de matar nossos sonhos, parem de violar nossos corpos, parem de fingir que não enxergam, parem de aceitar, de negligenciar, de empurrar a solução e o sofrimento de volta justamente para quem só precisava ser protegida.

PAREM! JÁ NÃO ACEITAMOS E NÃO ACEITAREMOS MAIS.

Já transformamos lágrimas em sangue e suor. Como dizia Maya Angelou, vítima de violência sexual na infância, o medo não me assusta e já não aceito mais o silêncio.

Nascer com uma vagina, com determinada cor da pele ou em determinado lugar, não serão motivos  para termos que viver a partir da pedagogia do medo.

Transformaremos lágrimas em força, em fúria, mas já não aceitaremos mais.

É mandatório que nossas crianças, nossas mulheres, nossas e nossos trans, nosso povo… sejam protegidos e respeitados, é o mínimo, e para ontem.

As mulheres vêm há séculos lutando, se organizando.

Mas quando eu era criança tinha a impressão de que não sabiam de sua força, mas hoje sei que elas sabem, sabemos, estamos mais fortes e unidas.

As mulheres são a força motriz deste país, são a maioria trabalhadora, são quem mais estuda, quem zela pelas crianças e pelos anciãos.

São quem na maioria dos lares toma conta da casa, gera renda e ainda precisa dar jeito nas suas feridas causadas por esse sistema opressor e violento, assim como evitam/cuidam de outras vítimas.

Somos nós, organizadas, organizades, que iremos – mais uma vez – tomar a frente, o medo não nos assusta!

Saiam da frente porque as novas gerações usarão o que bem entenderem, beijarão quem bem entenderem, falarão o que pensarem, entre lágrimas ou entre gritos, mas ninguém mais as silenciará porque não aceitaremos mais, não estaremos sós, seguiremos atentas e fortes.

Recuar não é uma opção.

*Aline Blaya Martins: Mulher, mãe, militante social do Coletivo Célia Sánchez, professora, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFRGS

*A autora dedica a coluna a todas as vítimas de violência sexual e aos profissionais de saúde e pesquisadores que se colocam como amparo a elas, em especial a Marcelo Martins, Samara Lourenço, Paula Suseli da Silva, Stela Narareth Meneghel e tantos mais que a inspiram e fazem esta difícil luta valer a pena. Aos que não recuam nunca, que sigamos juntos, atentos e fortes.

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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