Aline Blaya: Bruxas da noite, dos aviões aos tatames
Por Aline Blaya*
Chega a noite.
Meu cérebro opera em loopings.
Penso nas bruxas da noite, destacadas pilotas soviéticas que, na Segunda Guerra Mundial, voavam sobre os exércitos alemães em frágeis aviões e que, ao se aproximarem das tropas, desligavam os motores e soltavam suas bombas mortais sem o menor barulho ou aviso prévio.
O batalhão era o pavor dos alemães. Abater uma bruxa da noite era a certeza de altas condecorações, mas elas raramente eram abatidas.
Eram jovens mulheres, suas coragens, suas solidões, suas certezas, a noite, e suas ações. Nada mais.
Chega o fim do dia e há muuuitos e muitos anos, talvez 48, sinto que é na solidão de cada noite que plano meu pequeno avião, avisto inimigos, rezo pelas aliadas e aliados, desligo motores para observar os alvos e ajo em silêncio, para então voltar para casa. Ainda pequena, ainda com a adrenalina correndo no corpo, ainda cansada, mas com a certeza de ter feito algo que precisava ser feito. Por mim. Pelo mundo.
Canso.
Mas meu instinto agora me tira do transe. É chegada a hora. É momento de colher.
É momento de aterrissar e de colocar uma lona sobre o avião. As batalhas seguirão, mas, a guerra terminou. Cessar-fogo.
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As bruxas podem trocar os aviões por vassouras. Podem se dedicar aos seus caldeirões com seus preciosos aromas de caldos e infusões. Lidar com seus gatos e cães e envelhecer como qualquer feiticeira que sem alarde guarda em algum hangar escondido a memória de dias intermináveis.
Sábado provavelmente aposento o avião que levei 45 anos até que estivesse pronto para chegar a mim, minha faixa mais preciosa de jiu-jitsu. A bendita faixa branca, que me permitiu alçar tantos e intermináveis vôos. Estamos voando juntas há praticamente 4 anos. E o futuro?… A Deus, ou a Iansã, pertence.
Devo ficar muitos anos ainda evoluindo até chegar à faixa preta, mas, nenhuma exigirá a desconstrução de mim mesma, como a faixa branca exigiu.
Nenhuma produzirá a alquimia necessária para me ensinar a desligar os motores, a estabelecer os alvos e a agir no tempo oportuno e já não mais condicionada pelo tempo cronológico.
Com meu pequeno monomotor branco aprendi que meu corpo sabe resistir, que hematomas doem, mas nem se aproximam de dores da alma. Aprendi que dores da alma também podem ser curadas através do corpo e que para quem soma consistência, a serenidade e coragem, nem sequer o céu é o limite.
Em 2021 minha filha abriu uma porta. Meu melhor amigo me deu um avião. Mestres com gentileza e força me apontaram o caminho e a ãnima que existe em mim me disse: vai. Fui.
Quanta dor eu senti neste caminho. Quanto voo solitário.
Quantas vezes mandei o amor embora para cuidar das minhas feridas.
Li essa semana que todos os loopings da minha cabeça são um problema de falta de sintonia, de conexão.
Hoje entendo que só uma bruxa guiada por sinais, que não se explicam, poderia ter largado a vassoura, o caldeirão, as ervas… as frágeis conexões que a sustentavam no início da jornada… para subir em um avião no meio da noite, sozinha, completamente sozinha, e sair bombardeando tudo e abrindo caminhos que curam.
Saí para não voltar enquanto a tarefa não estivesse cumprida. Enquanto a guerra não tivesse terminado.
Escutei ao longe o grito desesperado da minha mãe vendo a filha se entregar à escuridão, se afastar para muito longe… e ficar segurando apenas o medo e o pânico de perder mais uma para o desconhecido.
Escutei o ˜choro˜ das minhas filhas e os bracinhos abertos, a cada vôo, a cada treino. Ontem na mesa, em meio a muitas risadas, amores e cafés, escutei da mais velha: tu precisa mesmo ir, precisa mesmo treinar??
Falei:
— Amor, as pessoas lutam, se esforçam, e recebem suas faixas em um período de 2 anos, mais ou menos. Eu há 4 anos luto contra mim mesma, contra os meus medos, contra minha vergonha, contra todos os limites que um dia o mundo e eu mesma me impusemos e que eu acredito que não preciso mais.
Ela com o semblante sério apontou para o quimono e disse: chama o uber. Com amor, foi até o hangar e destapou o pequeno monomotor.
Mais uma vez sobrevoei a noite e nesta noite a comandante do pelotão sentenciou: Te prepara, a guerra está chegando ao final. Tua prova tem data e hora para acontecer. Assim, sem aviso prévio, ou com todos os avisos prévios de uma vida inteira, anunciou que independente do desfecho, era chegado o momento.
Hoje posso dizer o que há muito tempo desejei e não me sentia autorizada: sou uma lutadora de jiu-jitsu, sou uma bruxa da noite, e a faixa, a prova, não mudarão nada.
Nos próximos 45 anos virão outras batalhas. A bruxa que passou 4 anos, ou talvez sejam 48, sobrevoando a morte, agora aterrissa. Já não precisa mais do paraquedas. Reconheceu suas próprias asas.
Já não sabe, e tão pouco tem pressa em saber, quais serão as batalhas que a esperam, mas, já não teme a noite, já não teme a vida, já não teme a morte, já não teme a separação de nada e nem de ninguém. Tem a si mesma e na alma leva os seus.
Tudo caminho, tudo passagem.
O looping já não existe mais, o tempo já não existe mais. É tempo de faixas e céus azuis.
Bem-vinda.
Aline Blaya Martins: Professora da Faculdade de Odontologia e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Publicação de: Viomundo