Águas do Rio Grande do Sul: Rio Camaquã cruza o Pampa resistindo aos assédios da mineração

“Da água brotou a vida. Os rios são o sangue que nutre a terra, e são feitas de água as células que nos pensam, as lágrimas que nos choram e a memória que nos recorda”, escreveu Eduardo Galeano, no livro “Os filhos dos dias”. Nesta quarta reportagem da série Águas do Rio Grande, o Brasil de Fato RS fala sobre a situação do rio Camaquã.

As curvas do Camaquã são de encantos naturais, biodiversidade única e histórias de vida e de resistência. O rio nasce nas coxilhas da Serra do Sudeste, arredores de Bagé, Dom Pedrito, Lavras do Sul e Caçapava do Sul e, com 430 km de extensão, cruza o Pampa gaúcho banhando 28 municípios, para quem suas águas e afluentes são de fundamental relevância socioambiental. Deságua entre os municípios de Camaquã e São Lourenço do Sul, unindo-se à Lagoa dos Patos.

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A Bacia Hidrográfica do Camaquã abriga cerca de 250 mil habitantes, sendo pouco mais da metade em áreas urbanas. Nas proximidades do rio, resistem modos de vida mais conectados à natureza, como pecuaristas familiares, quilombolas e indígenas. Seu nome, de origem tupi-guarani, significa rio forte. Camaquã vem de Icabaquã, onde I significa rio, água, e Cabaquã velocidade, correnteza, conforme explicação do autor Antonio Cândido Silveira Pires.

O Camaquã é uma artéria de preservação do Bioma Pampa, que atualmente é o que mais perde vegetação e tem a menor proporção de unidades de conservação entre os biomas do país. A região do Alto Camaquã abriga locais de beleza única como o Rincão do Inferno, as Guaritas e as Minas do Camaquã, localidade reconhecida por sua geodiversidade como uma das sete maravilhas do Rio Grande do Sul.


Região das Guaritas, local visado pela mineração / Foto: Arquivo pessoal/Márcia Collares

Com um relevo acidentado e fortemente ondulado, a mecanização das atividades agrícolas não prospera na região, o que contribui para sua preservação. É o que conta a bióloga Anabela Deble. Ela já participou de diversos estudos na região, tendo lá identificado novas espécies, e destaca a importância de preservação da biodiversidade na localidade, pela quantidade de espécies raras ou ameaçadas que vivem e dependem dos habitats. Muitas ainda nem mesmo investigadas.

“Ali podemos encontrar espécies de cactos, bromélias, orquídeas e petúnias endêmicas da região, além de uma fauna extremamente rica onde são encontrados gatos silvestres, tatus, tamanduás, serpentes, anfíbios, tucanos, araras e peixes anuais”, explica. Pontua que o rio provê toda a biodiversidade a esta região remanescente do Bioma Pampa, que foi reconhecido apenas em 2004 pelo IBGE.

O Camaquã também guarda histórias da formação política e cultural do país. O escritor e cineasta Tabajara Ruas lembra que o rio foi um importante local de resistência das tropas farroupilhas contra os imperiais brasileiros durante a Revolução Farroupilha (1835-1845). Alguns dos filmes que dirige, a exemplo de Netto Perde sua Alma, foram filmados nas coxilhas do Alto Camaquã.


Em Cristal, às margens do rio, fica hoje um museu onde viveu o general farroupilha Bento Gonçalves / Foto: Adriane Braga/Parque Histórico General Bento Gonçalves

“Quando imperiais entraram na Lagoa dos Patos e impediram a navegação na lagoa, a única maneira de incursionar era com os barcos leves farroupilhas. A barra era muito baixa, o barco pesado dos imperiais encalhava, o que aconteceu diversas vezes. E ficavam ali, alvos imóveis para emboscada. Farroupilhas quando atacavam na lagoa chegavam na barra, saltavam fora do barco e seguiam porque dava pé, atravessavam a barra empurrando o barco, depois voltavam ao barco e desapareciam”, conta.

Nas suas margens na altura de Caçapava do Sul, em propriedade da família do general Bento Gonçalves que ficou famosa após a série A Casa das Sete Mulheres, ficava o estaleiro da República Rio-Grandense, de onde Giuseppe Garibaldi liderou os barcos Seival e Farroupilha na tomada de Laguna e proclamação da República Juliana. “É exatamente aí na barra, essa região de rios que os Farroupilhas dominavam”, afirma Tabajara, que é autor de Os varões assinalados, livro que deu origem ao romance de Letícia Wierzchowski que acabou adaptado à série.

Não à mineração


Movimento contra a mineração no Rincão do Inferno / Foto: Arquivo pessoal/Márcia Collares

Quase duzentos anos depois, a batalha mais recente no Camaquã é por sua preservação. Desde 2016, comunidades do entorno do rio travam uma luta contra o Projeto Mineração Caçapava, a fim de evitar a repetição da catástrofe ambiental que afetou significativamente o Camaquã em 1981, quando a Companhia Brasileira de Cobre deixou vazar rejeitos de lama com metais pesados em suas águas. Moradores lembram que a água chegou a mudar de cor na ocasião e foi grande a mortandade de peixes.

O Movimento Unidade Pela Preservação do Rio Camaquã (UPP) e a Associação para Grandeza e União de Palmas (AGRUPA) puxaram essa resistência contra a mineração. Denunciaram as irregularidades e os prejuízos do projeto da empresa Nexa Resources, controlada pela Votorantim S.A., que visava construir uma mina a céu aberto de cerca de 37 hectares para extração de cobre, chumbo e zinco a 800 metros do rio Camaquã, na localidade de Guaritas, na cidade de Caçapava do Sul.

Uma luta que iniciou com os moradores da região e foi encontrando parceiros e apoiadores em todos os lugares que passava, muito bem registrada no documentário Dossiê Viventes. Vitoriosa, trouxe ânimo para os moradores da região e as entidades ambientalistas do estado, visto a descoberta do pedido de arquivamento do processo de licença ambiental, solicitado em novembro de 2021 pela Nexa Resources à Fundação Estadual de Proteção Ambiental (FEPAM), segundo recente reportagem do Matinal News.


Reunião realizada às margens do rio Camaquã em abril de 2017, promovida pela Assembleia Legislativa / Foto: UPP Rio Camaquã

Márcia Collares, ao lado de sua irmã, Vera Collares, esteve na origem deste movimento contra a mineração. Ela é pecuarista familiar no distrito de Palmas, em Bagé – atividade amplamente praticada na região do Alto Camaquã. Ela destaca que as populações que vivem nas redondezas do Camaquã mantêm, historicamente, estreitos laços de carinho e preservação com o rio.

Um rio que une

“Nós temos uma ligação muito grande com o rio. Minha família toda vive na costa do Camaquã há séculos, desde 1.700 e poucos a gente tem os primeiros registros da família que se fixou ali na região”, afirma. Márcia diz que o Camaquã é um rio que une, e não que divide as comunidades, e conta que mantém hábitos dos antepassados, como acampar na beira do rio nas épocas de ano novo. “Apesar de morarmos perto, nossa casa fica a 2 km, mesmo assim vamos acampar sempre na virada.”

Recorda com carinho das histórias transmitidas pelos seus pais e avós, da ligação que tinham com as plantas e os chás, “do respeito que eles tinham pela natureza”. Segundo ela, os antepassados de quem vive na região já eram sustentáveis antes mesmo dessa palavra estar na moda. “Essa pecuária é em campo nativo, nós não desmatamos. O gado daqui é acostumado a ficar no meio do mato, ele não faz mal, vários pesquisadores já verificaram, inclusive, que é um fator de preservação porque ele pasta e faz as fezes ali, isso serve como retroalimentação.”

Seu marido, o músico bageense Guilherme Collares, também participou ativamente da luta contra a mineração. Foi um dos que desceu a caiaque cerca de 370 km do rio, na expedição “Caminho da alma”, que em 2016 ajudou a divulgar o movimento contra a mineração nos municípios banhados pelo Camaquã. Suas composições abordam, entre outros temas do Pampa, a vida no rio e a preservação ambiental e cultural da região. Abaixo, com o grupo Folklore 4, eles cantam na beira do Camaquã:

 

Terra de raízes

A região também é lar de povos originários. Conforme relatório produzido pelo Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa e pela Fundação Luterana de Diaconia (FLD), a bacia hidrográfica do Camaquã e a zona portuária de Rio Grande abrigam 30 áreas indígenas e 55 comunidades quilombolas. No Rincão do Inferno, que integra o Quilombo de Palmas, vivem atualmente duas famílias remanescentes.

Alcíbio Franco é um dos últimos quilombolas que vivem na localidade. Sua casa fica há dez minutos a pé do rio. Ele diz estar muito feliz com a notícia do fim do projeto de mineração. “Meus avós que vieram pra cá, meus pais já eram geração daqui. Isso aqui pra nós não têm preço”, afirma. “Pra gente que viveu toda vida nesse lugar, lá de trás que não tinha estrada nem nada, caminhava oito horas pra pegar um ônibus e comprar comida em Bagé, uma vida na batalha e no sacrifício, se chegasse qualquer coisa a sair nesse lugar, poderia dar lucro pra quem fosse fazer, mas para os moradores com certeza não”, avalia.


Márcia e Vera Collares ao lado dos quilombolas que vivem no Rincão do Inferno / Foto: Arquivo pessoal/Márcia Collares

Hoje, com 70 anos, considera a si e a seus antepassados como protetores da natureza do local. Afirma que ali estão as suas raízes e celebra a titulação, conquistada em 2017, e a chegada da energia elétrica, em 2007 – o que permitiu puxar água do poço, ter chuveiro quente e uma máquina de lavar roupa. “Graças a Deus isso aqui hoje tá em área de quilombo”, diz. “Se Deus nos deu esse privilégio pra ficar curtindo depois de todo o trabalho que nós tivemos, o que vir de melhoria hoje em dia é privilégio de Deus e dos guerreiros que não saíram daqui”, completa.

Memórias da devastação

Também contente pela notícia do fim do Projeto Mineração Caçapava, Márcia recorda o choque que tomou ao saber do projeto, em 2016, quando já haviam ocorrido duas audiências públicas e que ninguém sabia. Conta que foi como reviver a época em que era adolescente, quando com “uns 14 ou 15 anos” viu o transbordamento de material tóxico no rio que “causou uma grande devastação, matou muitos peixes, animais como lontras e outros que comiam peixe”.

Anabela também pontua que o desastre ambiental causado pelos rejeitos da mineração nos anos 1980 afetou o rio de forma significativa, destruindo a diversidade de peixes na região. “A partir deste fato a subsistência de povos indígenas e tradicionais foi extremamente afetada. Hoje o rio está recuperado e permanece ainda intocado do ponto de vista da mineração e hidrelétricas, mantendo a biodiversidade regional, o que deve continuar a ser preservado”, defende a bióloga.


Cacto tuna é uma espécie exclusiva do Bioma Pampa / Foto: Felipe de Almeida Borges

A advogada da UPP, Ingrid Birnfeld, ressalta como fundamental “para desmoronar esse projeto de mineração” a criação de um grupo interinstitucional das comunidades, associações, sindicatos de trabalhadores rurais e um grupo muito grande de pesquisadores. “São pessoas que têm uma vida dedicada ao rio”, ressalta. Ela lembra das comunidades que vivem de forma sustentável, das atividades culturais como a Descida do Rio Camaquã e das “praias lindíssimas, a praia de Camaquã, as pessoas vivem e se banham”.

“Talvez por isso essa mobilização contrária a esse grande projeto tenha sido tão intensa, porque se mexeu num patrimônio natural muito importante. Tem cidades que já tombaram o rio Camaquã como patrimônio histórico, cultural e natural, a exemplo de Bagé”, completa a advogada.

Ente vivo que precisa ser protegido

Tabajara Ruas revela ter grande admiração por essas pessoas que se dedicam às causas ecológicas e pontua que o Camaquã “é um ente vivo e precisa ser protegido”. Entende que essa luta é fundamental em meio ao “problema político que o país atravessa hoje, governado por um lunático de más intenções”.

“Essas pequenas comunidades do Camaquã, esses pontos de resistência são fundamentais para a sobrevivência inclusive das pessoas, do estado, da nossa cultura, e quem está por trás disso, quem estimula, quem pensa, quem aponta o dedo, em sua maioria são as mulheres aqui do Rio Grande do Sul”, opina.


Expedição “Caminho da alma” chegando no município de Cristal / Foto: Arquivo pessoal/Márcia Collares

O presidente do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio Camaquã, Lindomar Bergmann Duarte, chama a atenção para o fato da entidade não ter recebido nada de oficial sobre o fim do projeto da Votorantim. “Como diretoria do Comitê, não recebemos nada do estado ou do DRH (Departamento de Recursos Hídricos do RS) a respeito da desistência oficial, a gente está aguardando o documento.”

Ele ressalta a pluralidade do Comitê, regrado pelo DRH e composto por representantes de diversas categorias da sociedade que utilizam o rio Camaquã, como associações, sindicatos, cooperativas, empresas, e de instâncias municipais e estadual do poder público. “É um fórum de debates dentro da gestão das águas com o intuito de dialogar sobre toda e qualquer ação que venha causar impacto nos recursos hídricos”, explica.

Comenta ainda que o Comitê, durante o processo de luta das comunidades contra o projeto, foi contrário à sua instalação. “O pessoal das associações estão comemorando (a notícia do fim do projeto), a gente também é solidário com essa questão, era um projeto que não trazia retorno positivo, então ficou no equilíbrio, fizemos audiências e o Comitê foi contrário de forma unânime à mineração”, conta.


Pecuária familiar de pequeno porte é considerada como uma forma de preservação da região / Foto: UPP Rio Camaquã

Desafios de hoje e do futuro

Lindomar aponta outro problema comum em rios brasileiros que também afeta o Camaquã: a falta de saneamento básico nas áreas urbanas dos municípios. “O tratamento em si é o que se cobra muito, o que se encontra hoje é falta de recursos, questão política, uma gestão que empurra pra outra, e a gente vai brigando, sempre defendendo a questão do saneamento básico, um assunto muito prioritário.”

Essa foi uma das conclusões do Plano de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do rio Camaquã, concluído em 2016. O estudo foi realizado sob protagonismo do Comitê, com reuniões com usuários do rio, comunidades da bacia e poder público. Detalha aspectos socioambientais da região e usos das águas, a partir dos anseios das populações, com o objetivo de garantir o uso sustentável do Camaquã e seus afluentes para os próximos 20 anos.

O presidente do Comitê conta ainda que a seca atingiu fortemente a região, o que afetou a vazão do rio. “A gente tem informações, dados da Emater, de que praticamente todos os municípios da bacia decretaram estado de calamidade. Existem pontos no Médio Camaquã onde está tendo formação de limo, porque reduziu o nível de água e acaba formando essa espécie de alga.”

O baixo nível do rio por conta da estiagem interferiu na tradicional Descida do Rio Camaquã, que neste ano, em sua 27ª edição, realizada entre os dias 25 e 27 de fevereiro, teve o percurso reduzido. Programado inicialmente com 26 km, teve que ser encerrado nos 20 km, para evitar dificuldades de navegação em áreas que apresentam nível baixo.

Apesar da seca, Lindomar afirma que não chegou a faltar água para abastecimento humano, já que poucos municípios da bacia têm a captação de água para este fim. Dos 28 municípios da bacia, 13 possuem sua área urbana dentro da bacia do Camaquã. Destes, quatro são abastecidos por água subterrânea e nove por cursos d’água superficiais. O maior uso do recurso hídrico, que corresponde a 98,1% do total, acaba sendo pela agricultura, principalmente no cultivo de arroz nas áreas baixas da bacia.


Bacia hidrográfica do rio Camaquã / Reprodução/Sema

Na avaliação de Anabela, as maiores ameaças para o rio atualmente são empreendimentos de alto e médio impacto como a mineração, a silvicultura, a irrigação e o uso de agrotóxicos. “Hoje temos uma grande responsabilidade social em relação aos empreendimentos que são propostos para o Camaquã, alguns projetos de hidrelétricas, além de outras questões, são extremamente inconvenientes levando em consideração a grande diversidade que existe no local ainda pouco estudada”, diz a bióloga.

Ingrid também comenta sobre esta outra ameaça ao Camaquã: os inúmeros pedidos de estudos para a criação de centrais hidrelétricas no Camaquã. “Há dez anos tinha um projeto que nós conseguimos barrar e agora ele voltou de novo. As ameaças rondam esse rio exatamente porque ele é um rio extenso, caudaloso, de montanha, ele se torna muito atraente pra esses projetos.” Mas Lindomar tranquiliza: “A respeito de barragens no rio, não se vê nada, existem apenas estudos”.

Para Márcia, que diz não ter tirado folga da luta pelo Camaquã nem mesmo um dia, a defesa por sua preservação não acaba com esta vitória sobre o projeto de mineração. Mesmo porque existem mais de 5 mil requerimentos de autorização de pesquisa mineral já encaminhados ao Departamento Nacional de Produção Mineral, o DNPM, visando o subsolo gaúcho.

Contudo, afirma que a grande mobilização das pessoas que vivem o rio traz força para enfrentar os desafios que virão. E também a esperança de que o amor pelo rio siga no coração daqueles que vão continuar resistindo no futuro. “As novas gerações já estão sabendo, a gente teve crianças que se criaram com esse peso, elas iam nas audiências e participavam. Isso vai ficar marcado na vida delas.”

 

Publicação de: Brasil de Fato – Blog

Lunes Senes

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