Heleno Corrêa: Saúde Única disputa o interesse público e o poder econômico sobre a saúde da população

Saúde Única: o que está em disputa?

Para epidemiologista Heleno Corrêa Filho, Saúde Única representa a repaginação da medicina preventiva, e desconsidera a densidade política e histórica da Saúde Coletiva, que sustentou a Reforma Sanitária e forjou o SUS como projeto democrático.

Por Clara Fagundes, site do Cebes

O conceito de Saúde Única (One Health) tem sido apresentado como marco renovador na agenda sanitária global, integrando a Saúde humana, animal e ambiental.

Mas, para o médico epidemiologista Heleno Corrêa Filho, livre docente aposentado da Unicamp, colaborador ESCS-UnDF e do mestrado profissional da Fiocruz, falta rigor histórico e sobra conveniência política à essa narrativa de “inovação”.

“O que hoje se convenciona chamar de Saúde Única equivale a retomar a tríade de Frost–Leavell–Clark”, afirmou Heleno, em entrevista ao Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes).

A reaparição, agora sob chancela de organismos multilaterais, desconsidera a densidade política e histórica da Saúde Coletiva. Resgatando a tradição crítica de Virchow e Villermé, Heleno lembra que a Medicina Social nasce como denúncia das desigualdades geradas pelo capitalismo industrial.

No Brasil, essa matriz sustentou a Reforma Sanitária e forjou o SUS como projeto democrático. Por isso, critica a forma como a Saúde Única tem sido incorporada hoje — muitas vezes blindada de disputas estruturais.

“É novidade apenas para setores que estiveram alheios ao desenvolvimento político dos últimos cinquenta anos”, diz, referindo-se a áreas como a vigilância animal, sanitária e de fronteiras.

Ele alerta que esse deslocamento conceitual é funcional a ambientes internacionais que evitam confrontar modelos produtivos que geram adoecimento, como o agronegócio e a indústria de agrotóxicos.

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Qualquer tentativa de alterar o capítulo constitucional da saúde abre a porta para regressões profundas, alerta Heleno. “Mudar esses instrumentos hoje é golpe e retrocesso de pelo menos cinquenta anos”, afirma.

A disputa contemporânea pela Saúde Única é, acima de tudo, uma disputa sobre quem define o rumo do Estado e os limites entre interesse público e poder econômico.

1. A proposta de Saúde Única é compatível com a medicina social que desemboca na saúde coletiva na América Latina?

Heleno Côrrea: A Medicina Social é uma formação discursiva surgida do Iluminismo alemão e francês nos séculos posteriores ao século XVIII. Os nomes mais conhecidos são Louis-René Villermé e Rudolph Virchow. A contribuição de Virchow foi particularmente importante ao antepor, ao movimento imperial da Áustria e Prússia pela previdência social estatal, a necessidade de dar vida digna aos trabalhadores, particularmente os da mineração da Silésia, região que hoje integra a Polônia.

A importância do trabalho semiescravo dos mineiros nos anos 1800 derivava da centralidade estratégica do carvão mineral para o capitalismo nascente. Em termos atuais, seria tão importante quanto a geração de energia do petróleo e da energia nuclear, bem como sua transição para as “fontes limpas” — hidráulica, eólica e solar. Os mineiros eram a fonte do trabalho para a geração da riqueza acumulada.

Os reflexos dos conceitos da Medicina Social na formação da Medicina Preventiva e Social latino-americana, com posterior desenvolvimento da epidemiologia crítica e da Saúde Coletiva, são derivações atualizadas das contribuições de Villermé e Virchow, inobstante a modulação e distorção introduzidas por fundações estadunidenses que difundiram e implantaram reformas educacionais e dos sistemas de saúde latino-americanos no século XX.

O conceito da tríade agente causal–hospedeiro–ambiente, introduzido em 1928 por Wade Hampton Frost  e adaptado em 1976 por Hugh Rodman Leavell & Eugene Gurney Clark, foi amplamente difundido na América Latina nos esforços de consolidação da chamada Medicina Preventiva e Social.

O que hoje se convencionou chamar de “Saúde Única” equivale a retomar a tríade de Frost–Leavell–Clark, que de algum modo se perdeu a partir dos anos 1990, com o surgimento de novos conceitos sociais característicos da Saúde Coletiva.

Esta última atualizou e incorporou componentes inexistentes nas formações discursivas anteriores, ao colocar o papel participante, direto e ativo, da população — particularmente dos trabalhadores — por meio de suas organizações sociais, interferindo no planejamento executivo vertical dos Estados.

No Brasil, houve uma reinvenção do termo nazista “controle social” — originalmente associado ao controle da sociedade pela propaganda do Estado.

O conceito foi “repaginado” com viés social-democrata e proto-socialista, passando a significar exatamente o contrário: em Saúde Coletiva, “controle social” é a participação da sociedade organizada na fiscalização da ação do Estado na Saúde Pública.

Nesse sentido, o conceito de Saúde Única — retomado e impulsionado pela pressão das organizações multilaterais internacionais a partir de 2008 — é uma resposta tardia e antiquada à pressão política por sistemas nacionais de saúde universais, integrais, equânimes e com participação popular direta no controle de suas ações.

2. Você avalia que Saúde Única traz inovações importantes e imprescindíveis para a garantia do direito à saúde?

Heleno Corrêa: A aplicação de um conceito como o da Medicina Social revoluciona os sistemas de saúde onde eles são iníquos, inexistentes ou regulados por direitos escassos. O surgimento da tríade agente–hospedeiro–ambiente revolucionou o ambiente destrutivo capitalista nos países em que o capitalismo avançou com uso de agrotóxicos, trabalho industrial intensivo semiescravo e difícil acesso aos serviços de saúde.

Durante a ditadura empresarial-militar brasileira (1964–1985), era censurável propor e falar de Medicina Preventiva, largamente baseada no conceito da tríade.

Com os avanços democráticos e organizativos ocorridos na construção da Saúde Coletiva brasileira a partir de 1990, o conceito de Saúde Única representa a retomada de propostas dos anos 1970–1989.

Isso ocorre, em parte, porque setores que “descobriram” recentemente a chamada Saúde Única estiveram alheios àquele desenvolvimento político e conceitual.

Esses setores atuavam em campos não articulados diretamente com a organização dos serviços de saúde — como os herdeiros da antiga Medicina Tropical (depois transformada em Doenças Infectocontagiosas), a vigilância de saúde animal, a vigilância sanitária e o controle da produção e uso de medicamentos de uso animal e humano.

A unificação das ações desses setores com o SUS também representa novidade para áreas como vigilância de fronteiras e controle de qualidade de alimentos e medicamentos. Por isso, consideram “novidade” algo que lhes passou despercebido nos últimos cinquenta anos, com o surgimento da Saúde Coletiva, e nos últimos 37 anos de organização do SUS a partir da Constituição de 1988.

3. Quais os interesses envolvidos na implementação da Saúde Única?

Heleno Corrêa: Do ponto de vista das organizações multilaterais — como a Organização Internacional de Saúde Animal (OIE/WOAH), PNUD, OMS/WHO e OPAS/PAHO — a proposta representa a retomada de conceitos que permitem trabalhar com países onde não existem sistemas únicos de saúde, além de articular setores que, inclusive no Brasil, resistem a integrar-se ao SUS.

As organizações multilaterais preferem trabalhar sem atritos com Estados onde sistemas privatizados de saúde se desentendem com os sistemas de saúde animal, a vigilância sanitária e o controle de medicamentos. Também preferem evitar conflitos com multinacionais vendedoras de agrotóxicos, adotando apelos agroecológicos de caráter geral, sem implicações na mudança de modelos produtivos e de propriedade da terra.

Documentos com apelos unificadores encontram respostas positivas em diferentes sistemas políticos e sociais e não sobrecarregam as organizações internacionais com a gestão de crises políticas. Isso se torna particularmente importante no século XXI, quando grandes contribuintes dessas organizações retiram fundos alegando discordâncias políticas.

Para profissionais de setores não vinculados à assistência direta à saúde, que recentemente descobriram a Saúde Única como grande novidade, é inegável que se trata de um apelo semelhante ao que moveu bons profissionais nos anos 1940–1960 — e continuará a movê-los sempre que ouvirem propostas de unificar ações de prevenção primária, secundária e terciária.

O modelo aprimorado por Leavell & Clark exerce fascínio genuíno sobre quem não tem meios de intervir politicamente sobre sistemas únicos de Estado para a saúde. Para quem desconhece sua origem, é natural considerá-lo sempre uma grande proposta e descoberta.

Assim, a proposta internacional e as “descobertas” internas coincidem em objetivos e práticas, desde que não afrontem condicionantes da saúde vigentes em países como o Brasil, cujo SUS integra a perspectiva da Saúde Coletiva há 37 anos.

4. Onde se localiza o SUS no projeto político para a saúde forjado pelo movimento sanitário?

Heleno Corrêa: Quando o SUS foi criado em 1988 pela Constituição Cidadã (artigos 196–200), já existia articulação entre setores anteriormente descoordenados. Diversas modificações posteriores contribuíram tanto para melhorar quanto para desintegrar o SUS.

Sem entrar no mérito de quais e quando foram feitas essas alterações, o que mais gera reação política é quando políticos e gestores tentam burlar ou diminuir a ação do controle social do SUS.

Todas as iniciativas de evadir a gestão intersetorial dos Conselhos de Saúde — nacional, estaduais, municipais e locais — representam retrocesso ao modelo vertical da velha Saúde Pública, no qual “os de cima” decidem e comandam, e “os de baixo” executam.

O modelo dos anos 1970 da OPAS — determinação central e execução descentralizada — continua sendo base para a gestão moderna no século XXI em muitos órgãos de Estado. Nesse sentido, a “novidade” da One Health — Saúde Única — é atraente para quem vive os solavancos políticos da gestão em Estados onde se intensifica a disputa social entre capital e trabalho.

5. Como pensador do campo da saúde pública, você acredita que há necessidade de mudar o capítulo constitucional da saúde, hoje baseado no conceito de determinação social?

Heleno Corrêa: Qualquer proposta de mudança constitucional, legal ou normativa feita hoje virá acompanhada da atuação de verdadeiras facções políticas reacionárias, que tentam retomar o controle antipopular do Estado brasileiro.

Mudar esses instrumentos normativos hoje é apenas — e tão somente — golpe e retrocesso, na melhor das hipóteses, de pelo menos cinquenta anos.

6. O Brasil utilizou o G20 para pautar a cooperação internacional em saúde. Em 2025, a Organização Mundial da Saúde aprovou, por consenso, o primeiro acordo pandêmico. Qual a importância desse tratado para a América Latina e para o Brasil, em particular?

Heleno Corrêa: O Brasil exerce, em 2025, papel internacional de liderança continental e planetária. Por não ser automaticamente alinhado às políticas neoliberais e militaristas da OTAN e dos EUA, o país lidera um movimento que favorece a organização de novos sistemas decisórios multilaterais. Isso prestigia a saúde, o comércio, a diplomacia e a luta internacional contra as guerras e a fome.

A OMS/WHO foi enfraquecida pela retirada de financiamento dos EUA e pelo aumento do peso de contribuintes privados. O acordo firmado no âmbito do G20 representa um avanço na governança mundial em um contexto de provável repetição de pandemias.

Publicação de: Viomundo

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Colaborador Convidado

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