Lia Giraldo: One Health é repaginação de um modelo ultrapassado de ver e agir sobre a saúde pública
“One Health é uma repaginação ultrapassada”, afirma Lia Giraldo
Para Lia Giraldo, a Saúde Única é a reação dos que não aceitaram levar a reflexão sobre a determinação socioambiental para orientar superação das iniquidades em saúde.
Lia Giraldo, médica sanitarista e docente do Doutorado em Saúde, Ambiente e Sociedade
A Saúde Única (“One Health”) ignora a determinação socioambiental e os processos que produzem adoecimento, alerta a médica sanitarista Lia Giraldo, pesquisadora titular aposentada da Fiocruz.
Em entrevista ao Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Lia Giraldo destaca a incompatibilidade da proposta, formulada por organismos internacionais e setores econômicos, com a tradição latino-americana da medicina social e com o paradigma da Saúde Coletiva que estruturou o Sistema Único de Saúde (SUS).
Na entrevista a Clara Fagundes (Cebes), Lia Giraldo recupera a história do movimento sanitário brasileiro, contextualiza o surgimento do SUS e denuncia a tentativa de reintroduzir, de forma verticalizada, um paradigma biomédico, que privilegia interesses corporativos — especialmente ligados ao agronegócio, à indústria farmacêutica e à filantropia internacional.
“A One Health é uma reação de segmentos que não aceitaram — e não aceitam — levar a reflexão sobre a determinação socioambiental da saúde para orientar a compreensão e a superação das iniquidades em saúde”, afirma a pesquisadora.
Giraldo argumenta que, ao restringir o debate à relação entre saúde humana, animal e ambiente, a Saúde Única apaga temas centrais como desflorestamento, uso de agrotóxicos, condições de trabalho, desigualdades sociais e impactos climáticos.
“Estamos mais avançados que a One Health — e perdendo tempo com ela”, resume.
A sanitarista destaca o papel do Brasil e do Sul Global nas negociações internacionais, como o acordo pandêmico aprovado pela OMS em 2025. O SUS segue sendo capaz de responder a crises sanitárias e de pautar debates globais.
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1. A proposta de Saúde Única é compatível com a medicina social que desemboca na saúde coletiva na América Latina?
Lia Giraldo: Não. São dois caminhos conceituais, metodológicos e práticos completamente diferentes; são radicalmente distintos. Penso que, na verdade, a One Health é uma reação de segmentos que não aceitaram — e não aceitam — levar a reflexão sobre a determinação socioambiental da saúde para orientar a compreensão e a superação das iniquidades em saúde, bem como as políticas que universalizem o acesso, organizem as ações segundo a integralidade /intersetorialidade/interdisciplinaridade e que, eticamente, protejam os mais vulnerabilizados pelo princípio da equidade.
Sempre houve esse embate. Não só no Brasil, mas no mundo, a One Health vem sendo apoiada pelos setores do agronegócio e pela Big Pharma, ou seja, pela indústria da doença.
Há grandes interesses corporativos nessa abordagem. É preciso entender a história para compreender onde estamos. Por exemplo: no Brasil, o campo da “medicina tropical” já teve grandes pesquisadores, como o parasitologista Samuel Pessoa, entre inúmeros outros que se preocupavam com as iniquidades em saúde, como o médico Josué de Castro, no tema da fome.
Eles viam claramente os processos que levam às iniquidades em saúde, decorrentes da determinação social das doenças, e tiveram seus pensamentos censurados e duramente perseguidos, porque contrariavam o modo reduzido de tratar os problemas de saúde que afetavam nossa população, recusando-se a limitar sua análise aos patógenos ou indicadores biomédicos.
Contrariavam o modelo da tríade agente–hospedeiro–ambiente, criado no início do século XX (1928), nos EUA, pelo epidemiologista Wade Hampton Frost, e difundido pelos filantropos-capitalistas da época.
Depois, o mesmo modelo foi reeditado pelos médicos americanos Hugh Leavell e E. Gurney Clark (1965), para introduzir o conceito de história natural das doenças e níveis de prevenção. Mais recentemente, aquele mesmo modelo foi rebatizado pela abordagem One Health, que ressurge pela Associação Americana de Medicina Veterinária (AVMA) desde o início dos anos 2000.
Em 2022, ela foi acolhida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pela FAO, pela Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) e pelo PNUMA. Há muitos interesses comerciais em torno da One Health, que a tornam incompatível com a Saúde Coletiva.
2. Você avalia que Saúde Única traz inovações importantes e imprescindíveis para a garantia do direito à saúde?
Lia Giraldo: Como expliquei acima, não. Trata-se de uma repaginação de um modelo reduzido de ver e agir sobre problemas complexos de saúde pública, que a One Health reduz a um triângulo de relações — antes chamado de agente–hospedeiro–ambiente — inicialmente limitado às doenças epidêmicas zoonóticas e ao uso abusivo de antibióticos por veterinários, temas já tratados há muito tempo, sem nenhuma novidade.
Agora, pelo lobby dos interesses corporativos e comerciais envolvidos, o triângulo passou a ser chamado de saúde animal–saúde humana–ambiente/ecossistema.
Na formulação da One Health, ficam excluídos os processos de determinação socioambiental da saúde, e não se avançam as transformações necessárias nas raízes dos problemas — justamente aqueles que produzem danos à saúde humana, animal e ambiental.
Exemplos: desflorestamento; modos industriais de produção de carne com animais confinados, maltratados e submetidos ao uso abusivo de antibióticos; alimentos ultraprocessados; uso de agrotóxicos; contaminação das águas e dos solos.
O sistema de saúde brasileiro possui um arcabouço legal e institucional que permite avanços muito além dos limites da One Health – arcabouço que o SUS demonstrou plenamente durante a pandemia de Covid-19. Mesmo diante de um governo negacionista e antivacina — apoiado por setores que hoje paradoxalmente integram o Plano de Saúde One Health no Brasil — o SUS mostrou sua potência.
Não precisamos da intrusão da One Health aqui. Estamos mais avançados e mais preparados. Perde-se tempo com essa formulação ultrapassada, quando poderíamos aprimorar o SUS onde sabemos que é necessário. Seus defensores usam o nome One Health para rotular tudo o que foi construído no Brasil desde os anos 1980. Até agora, pelo que tenho lido, não criaram nada.
3. Quais os interesses envolvidos na implementação da Saúde Única?
Lia Giraldo: Na Europa, houve grande pressão sobre os veterinários devido ao uso abusivo de antibióticos, que estava causando resistência bacteriana e gerando problemas para o tratamento de doenças infecciosas em humanos e animais.
Outro ponto foram as epidemias e pandemias virais, cujos vírus altamente infectantes para humanos tiveram origem em animais silvestres ou em animais confinados em sistemas industriais de produção de carne, como aves (gripe aviária) e porcos (gripe suína). Também houve vírus surgidos de animais silvestres, como o SARS-CoV-2 (Covid-19) e o Zika vírus (causador de microcefalia no Nordeste do Brasil).
Esses problemas aumentaram a pressão pela necessidade de controlar epizootias e arboviroses — estas últimas agravadas pelas mudanças climáticas. Portanto, havia necessidade de ações sobre saúde animal e sua relação com a saúde humana, mas isso foi feito sem considerar a complexidade dos processos produtivos, das alterações dos ecossistemas e das condições de vida e trabalho das populações.
Embora a OMS tenha uma Comissão de Determinantes Sociais da Saúde, optou por um caminho mais curto, adotando o modelo ultrapassado proposto pela Associação Americana de Medicina Veterinária, intermediada pela OIE, julgando que assim estaria fornecendo uma resposta ao mundo.
Mas logo os setores comerciais viram aí uma janela de oportunidades. A filantropia internacional — que sempre acompanha esse tipo de política para subordinar países pobres à adoção de políticas de seu interesse — rapidamente aderiu (como historicamente fizeram fundações americanas, inglesas, alemãs, entre outras).
4. Onde se localiza o SUS no projeto político para a saúde forjado pelo movimento sanitário?
Lia Giraldo: O SUS foi uma construção coletiva de intelectuais do campo da saúde no Brasil, posteriormente apoiada por diversos setores da sociedade civil, conhecidos como movimento sanitário.
A primeira tarefa desse movimento — que também lutava pela redemocratização do país na década de 1970 — foi ampliar o conceito de saúde para além do que tradicionalmente se tratava no setor. Estava evidente que a saúde é resultante de processos decorrentes dos modos de exploração capitalista da natureza e do trabalho humano, conformando condições de vida que diferenciam o processo de adoecimento.
Para cuidar da saúde, eram necessárias ações integradas e intersetoriais para enfrentar problemas de acesso e qualidade em educação, trabalho digno, alimentação, habitação, saneamento, seguridade, segurança pública, cultura, lazer, comunicação, informação e preservação dos ecossistemas — todos elementos contemplados na Constituição de 1988.
O movimento sanitário cuidou também da democracia e da inclusão social, fundamentais para a garantia da saúde. As etapas seguintes foram a construção de um arcabouço jurídico capaz de sustentar esse entendimento.
Até 1988, o Brasil não tinha um sistema universal. Com exceção das capitais, a maioria dos municípios não dispunha de serviços além de prontos-socorros.
Centros de saúde, quando existiam, atendiam apenas algumas doenças infecciosas, desnutrição infantil, vacinação e pré-natal. A rede hospitalar era majoritariamente do INSS e atendia apenas trabalhadores formais; os demais dependiam das Santas Casas. A saúde mental se resumia aos manicômios. Nem estatísticas sólidas havia: muitas pessoas morriam sem sequer se saber de quê.
Foi o SUS que organizou tudo isso na maior parte dos estados. Hoje, até os municípios mais remotos contam com alguma estrutura, temos especialidades, alta complexidade, um poderoso sistema de informação e um sistema de vigilância muito mais robusto.
Ainda há muito a aprimorar, especialmente na integralidade e na intersetorialidade — o que depende do avanço institucional e democrático. As agendas contemporâneas envolvem problemas ambientais, mudanças climáticas, enfrentamento do racismo e garantia de direitos humanos das populações das florestas, do campo, das águas e das periferias urbanas.
A One Health chega ao Brasil de forma verticalizada, desconsiderando esse processo histórico. Em 2023, foi proposta ignorando a 17ª Conferência Nacional de Saúde, onde o tema não foi debatido nem deliberado. Para nossa surpresa, criou-se uma comissão por decreto para constituir um Plano Nacional que, na prática, exigirá participação ativa do SUS.
5. Como pensadora do campo da saúde coletiva, você acredita que há necessidade de mudar o capítulo constitucional da saúde, hoje baseado no conceito de determinação social?
Lia Giraldo: Veja: a Constituição de 1988 está sob ataque em vários de seus capítulos, especialmente nos temas ambiental, da seguridade social e, obviamente, da saúde, onde o interesse privatista nunca deixou de atuar. Se perdermos os princípios e diretrizes dos artigos 196 a 200 — que tratam da saúde para todos, segundo critérios de equidade — perderemos a Lei Orgânica da Saúde e todos os avanços conquistados para superar desigualdades e iniquidades em saúde.
O Brasil ainda é desafiado por desigualdades, mas está muito melhor do que há 35 anos. Nossa Constituição e nosso SUS são jovens, mas potentes. Qualquer retrocesso seria uma perda civilizatória, inimaginável em termos de prejuízo aos direitos humanos, à proteção da vida e ao enfrentamento dos processos nocivos da determinação social e ambiental da saúde.
O conceito de saúde inscrito na Constituição de 1988 é amplo e não se reduz a um triângulo animal–humano–ambiente. É um conceito complexo, muito mais profundo que o proposto pela One Health, insuficiente inclusive para lidar com zoonoses em sua dimensão epidemiológica e social na contemporaneidade marcada pelo antropoceno — ou capitaloceno — já que a expropriação da natureza, dos animais e dos humanos tem produzido as recentes epizootias.
6. O Brasil utilizou o G20 para pautar a cooperação internacional em saúde. Em 2025, a OMS aprovou por consenso o primeiro acordo pandêmico. Qual a importância desse tratado para a América Latina e para o Brasil, em particular?
Lia Giraldo: Foram três anos de negociação. O Brasil integrou a mesa diretora da negociação intergovernamental. Vimos na Covid-19 o absurdo que foi os países mais ricos terem melhores condições de acesso a vacinas e insumos, muitas vezes comprando praticamente toda a capacidade produtiva dos laboratórios — impedindo que outras populações acessassem sequer as sobras.
As iniquidades observadas e a enorme mortalidade — acima do que poderia ter sido evitado — mobilizaram os países. O objetivo era construir consensos sobre acesso e repartição de benefícios das pesquisas sobre patógenos, compartilhamento de amostras genéticas e dados entre países em caso de novos vírus, além da repartição justa de benefícios derivados dessas informações, como vacinas e medicamentos. Em maio de 2025, esse importante acordo foi assinado para prevenir e cooperar em situações pandêmicas.
O Brasil nos orgulha com sua posição avançada, sustentada pelo SUS e pelo pensamento coletivo consolidado no campo da Saúde Coletiva. Regidos por princípios e diretrizes que orientam a operação do sistema em todos os níveis federativos, não somos mais o “país tropicalzinho” do início do século XX. Somos soberanos e temos o que contribuir globalmente.
A decisão histórica da 78ª Assembleia Mundial da Saúde teve a participação brilhante do Brasil, graças ao desenvolvimento intelectual e político do campo da saúde coletiva. Isso beneficia não só o Brasil e a América Latina, mas também a África e a Ásia. O Sul Global mostrou sua força.
Viva o SUS e a Saúde Coletiva.
Clara Fagundes/Cebes
Publicação de: Viomundo
