Marco Mondaini: Não aos “intervalos bíblicos”

Não aos “intervalos bíblicos”

O avanço dos projetos de lei confessionais faz soar o alarme contra a perda da separação entre política e religião, ameaçando os fundamentos estruturantes da escola pública, como a cientificidade e a pluralidade

Por Marco Mondaini*, em A Terra é Redonda

1.

Há exatos seis meses, escrevi um artigo que procurava chamar atenção para a entrada dos assim chamados “intervalos bíblicos” em espaços educacionais públicos.

Na ocasião, havia me deparado com um cartaz que convidava cristãos e cristãs a conhecerem mais sobre Deus, no corredor do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Pernambuco (CCSA/UFPE).

Volto ao assunto em função do fato de se encontrarem em tramitação, ou já aprovadas, leis que tratam da regulamentação de “intervalos bíblicos” em cidades como Rio de Janeiro (Projeto de Lei número 847/2025, do vereador Rafael Satiê do Partido Liberal), São Paulo (Projeto de Lei número 01-00468/2025, do vereador Lucas Pavanato do Partido Liberal), Manaus (Projeto de Lei número 249/2025, do vereador Raiff Matos do Partido Liberal), Aracajú (Projeto de Lei número 47/2025, do vereador pastor Diego do União Brasil) e Recife (Projeto de Lei número 205/2024, do vereador Luiz Eustáquio do Partido Socialista Brasileiro).

A nível federal, Projeto de Lei da mesma natureza (4.232/2024) de iniciativa da deputada federal incumbente missionária Michele Collins tramita na Câmara dos Deputados.

Importante destacar que a missionária é esposa do deputado estadual pastor Cleiton Collins, proponente de uma lei não aprovada na Assembleia Legislativa de Pernambuco que tornava obrigatória a aquisição de bíblias pelas escolas públicas – marido e esposa, pastor e missionária, filiados ao Progressistas, diga-se de passagem.

Pelo exposto acima, não restam dúvidas quanto ao fato de que a proposta de inclusão de “intervalos bíblicos” nos vários níveis da educação pública não pode ser observada como uma iniciativa espontânea e dispersa de cidadãos preocupados com a defesa dos valores da família cristã brasileira.

Muito pelo contrário, trata-se de uma ação muito bem organizada e articulada de uma extrema direita confessional bolsonarista, reunida no Partido Liberal, Progressistas, União Brasil et caterva.[i]

Na mesma Assembleia Legislativa de Pernambuco na qual o deputado/pastor Cleiton Collins tentou aprovar a lei da compra obrigatória de bíblias pelas escolas públicas, travou-se uma disputa interessante em torno da iniciativa projetual de adoção dos “intervalos bíblicos” nas escolas pernambucanas – não ideal para quem defende os princípios republicanos, como o autor do presente artigo, mas que reduz os danos da ofensiva confessional da extrema direita bolsonarista.

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2.

Apresentado na ALEPE, em 15 de outubro de 2024, pelo deputado Renato Antunes do Partido Liberal, o Projeto de Lei 2.283/2024 “reconhece e autoriza a iniciativa voluntária dos estudantes de escolas, faculdades e universidades públicas e particulares do Estado de Pernambuco para a realização do ‘Intervalo Bíblico’”, sob a justificativa de que este “se orienta na crescente preocupação com os índices alarmantes de violência e consumo de drogas que vêm assolando as escolas, faculdades e universidades no Estado de Pernambuco, afetando diretamente a saúde mental e o desenvolvimento emocional dos estudantes”.

Ainda em 2024, o tema foi alvo de discussões na ALEPE em função da instauração de procedimento por parte do Ministério Público, com vistas a apurar s realização de “intervalos bíblicos” nas escolas estaduais.

No decorrer de 2025, dois outros projetos de lei foram apresentados por deputados bolsonaristas (Joel da Harpa, do mesmíssimo Partido Liberal, e Adalto Santos, do Progressistas) e um terceiro de autoria do proponente inicial, no sentido de “suavizá-lo” para fins de aprovação em plenário.

É, então, que, em 21 de outubro, a Comissão de Justiça da ALEPE aprova um substitutivo reunindo os quatro projetos anteriores, que resulta na criação de uma Política Estadual de Proteção e Exercício da Liberdade Religiosa no Ambiente Educacional que, nas palavras da deputada estadual Dani Portela, do PSOL, “corrige distorções” dos projetos anteriores, os quais “desrespeitavam a diversidade religiosa”.

A “redução de danos” do substitutivo deve ser saudado à medida em que, como afirma a deputada do PSOL, reconhece que “as escolas devem ser espaços plurais e inclusivos, não extensões de nenhuma igreja”, afinando-se, assim, ao espírito da Constituição Federal de 1988.

Porém, não subestimemos a capacidade da extrema direita confessional e bolsonarista em não apenas fazer passar projetos de lei voltados à entrada de “intervalos bíblicos” nas escolas do país, como também se utilizar de brechas legais para, de fato, dominar os espaços abertos nas escolas sob o manto protetor da liberdade religiosa.

Apenas aqueles que vestem antolhos não conseguem se dar conta de que está em curso no país, há tempos, um processo de “confessionalização” do Estado e da sociedade brasileiros, com todos os graves riscos deste decorrentes. A avalanche de iniciativas legislativas voltadas à regulamentação dos “intervalos bíblicos” assinala, de fato, uma volta a mais no parafuso da “confessionalização”. Corrijo-me: uma não, muitas voltas neste parafuso.

3.

Retorno, pois, ao artigo de maio passado para reiterar a importância civilizacional representada pela separação estabelecida na obra de Nicolau Maquiavel entre política e religião, Estado e Igreja – uma separação que levaria os pais do pensamento liberal, a começar por John Locke, a lançar as bases da liberdade religiosa e da laicidade do Estado, na modernidade.

Já se vão quase cinco séculos da publicação póstuma de O Príncipe de Maquiavel (1532) e mais de 335 anos do início da circulação do Segundo Tratado do Governo Civil e da Carta sobre a Tolerância de Locke (1689), e encontramo-nos no Brasil em meio a uma ofensiva sem precedentes de forças religiosas obscurantistas que vêm cercando/ocupando os espaços macro e microscópicos de poder por meio de aproximações sucessivas.

No que diz respeito à educação pública, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, perambulam propostas de adoção do ensino religioso nas escolas, que chegaram ao ponto da aprovação de uma lei, no Rio de Janeiro do governador Anthony Garotinho, que regulamentava o ensino religioso de caráter confessional (Lei Estadual nº 3459/2000).

Já se passaram 25 anos desta lei e, ao contrário do que afirma o ditado popular, as águas passadas continuam a fazer mover os moinhos do crescimento da “confessionalização” da vida social e política brasileira, não obstante a resistência de setores da sociedade civil e política nacional que insistem em defender o caráter laico do nosso Estado.

Pois bem, a articulada ofensiva de apresentação e aprovação de “intervalos bíblicos” em Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores em estados da federação e municípios de todo o país fazem soar o “alarme de incêndio” de um perigoso movimento de ataque àquilo que, por razões óbvias, se encontra nos fundamentos estruturantes da educação pública: o compromisso com a razão científica e a pluralidade ideológica.

Ora, os fundamentalismos religiosos em geral e o fundamentalismo neopentecostal em particular têm dado uma gigantesca cota de contribuição à proliferação de negacionismos de toda ordem, à interdição de debates que coloquem em confronto distintas visões de mundo, bem como à construção de barreiras à conquista de direitos dos setores subalternizados da sociedade, especialmente das mulheres e da comunidade LGBTQI.

Admitir os “intervalos bíblicos” implica fechar os olhos em relação ao fato de que, por um lado, temos um compromisso com a laicidade, com a cientificidade, com a democracia e com o pluralismo, e, que, por outro lado, os locais de exercício da fé religiosa já são inúmeros e, todos eles, de caráter privado.

Nas escolas públicas municipais e estaduais brasileiras, ao invés de “intervalos bíblicos”, voltados ao culto de uma religião específica (ou, numa visão republicana, qualquer modalidade de intervalo religioso!), deveriam ser estimuladas, isso sim, a nossa rica diversidade, por intermédio de “intervalos culturais”, com a presença de grupos de folclore – com suas canções, ritmos e danças; “rodas de diálogo” com a criativa turma do audiovisual e do teatro, na sequência da exibição dos seus filmes e peças; “contações de histórias” com os vários discípulos de Ariano Suassuna e Rolando Boldrin, a fim de que não se deixe morrer as suas “aulas espetáculo” e seus “causos populares”.

Isso, antes que a laicidade, liberal ou republicana, escorra por entre os nossos dedos…completamente.

[i] O caso do Recife, onde o propositor da lei municipal aprovada é do Partido Socialista Brasileiro, mereceria uma análise à parte acerca das antinomias do PSB do prefeito João Campos.

*Marco Mondaini é historiador, professor titular do Departamento de Serviço Social da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), apresentador do programa Trilhas da Democracia e autor, entre outros livros, de A invenção da democracia como valor universal (Alameda) [https://amzn.to/3KCQcZt]

PS. Já havia dado o ponto final no presente artigo quando li a notícia de que a Câmara de Vereadores de Florianópolis, por iniciativa do vereador João Padilha, do Partido Liberal, acabara de aprovar o uso da Bíblia como material de apoio nas escolas públicas e privadas do município, acompanhando o exemplo da Câmara de Vereadores de Belo Horizonte. No mesmo dia, o prefeito de Salvador, Bruno Reis, do União Brasil, sancionou a lei que autoriza o uso da Bíblia como recurso paradidático em escolas públicas e particulares da capital baiana.

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Publicação de: Viomundo

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