Rudá Ricci: As favelas brasileiras são mais conservadoras?

As favelas brasileiras são mais conservadoras?

Por Rudá Ricci*, em perfil de rede social

As pesquisas realizadas pelo Data Favela e pelo instituto de pesquisa Locomotiva não deixavam dúvidas: havia um forte sentimento de autodeterminação e de superação individual das mazelas que seus moradores viviam.

O estilo “self made man” dos morros brasileiros é enfeixado no papel protetor e na educação que as mães assumem nessas porções territoriais do país. As mães se constituem na figura principal de coesão familiar nas favelas. São elas que ensinam o sentido de dignidade e ordem. Exatamente isso: ordem.

Dignidade e ordem constituem um binômio extremamente peculiar. As pesquisas realizadas em favelas durante este século 21 indicam que os moradores do morro acreditam que por seu próprio esforço podem progredir. Por este motivo, não gostam de passeatas que trancam as vias de acesso ao trabalho. Sem trabalho, não têm como demonstrar seu potencial e, assim, adiam sua prosperidade.

Por este motivo, indicam os dados coletados, não acreditam que políticas públicas sejam responsáveis por sua melhoria de vida. São eles próprios, com ajuda da família e de Deus, que conseguem alcançar qualquer sucesso, por mínimo que seja. Apenas 4% dos moradores das favelas avaliam que o Estado contribuiu, de alguma forma, para sua condição de vida melhor.

A pesquisa realizada pela AtlasIntel, divulgada na última sexta-feira (dia 31/10), reforça esta percepção de um conservadorismo autossuficiente na cultura das favelas.

A Pesquisa AtlasIntel revelou que 55,2% dos brasileiros aprovam a megaoperação violenta realizada no Rio de Janeiro contra o Comando Vermelho, realizada na 3ª feira (28/10). 42% desaprovam. Outros 2,5% não souberam responder. O índice de aprovação na cidade do Rio de Janeiro é ainda maior, atingindo 62%. Mas, nas favelas, a aprovação atingiu 80%.

Se você ficou assustado com a opinião dos moradores de favela a respeito do ataque sem autocontrole da polícia, se prepare para o dado que apresento em seguida. Nas favelas da cidade do Rio de Janeiro, a operação violenta da polícia foi aprovada por 87,6% dos moradores. Mais da metade dos cariocas (63%) consideraram o nível de violência empregado na operação da semana passada como adequada, segundo a pesquisa do AtlasIntel.

Aqui se cruzam os dados e acredito que o denominador comum é o sentido e valorização da ordem social. Imagino que o terror de se viver sob o jugo do tráfico contribua para esta cultura, mas não tenho dados em mãos para afirmar categoricamente.

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Na ciência política, o emprego do terror da ação do Estado para coibir excessos individuais é marca do pensamento hobbesiano. É muito conhecida a frase emblemática de que o “homem é o lobo do homem”.

Pois bem, Thomas Hobbes sugeria que a vida sem um governo forte é uma guerra de todos contra todos, gerando insegurança e medo em meio à vida “solitária, miserável, sórdida, brutal e curta”. Para escapar desse caos, os indivíduos decidem fazer um contrato entre eles e cedem suas liberdades a um soberano absoluto que garante a ordem e a segurança através da força.

Esta teoria se alinha com a cultura das favelas demonstrada nas pesquisas, não?

Até antes das mobilizações dos “indignados” na Espanha em 2011, a transição democrática naquele país era surpreendentemente ordeira.

O fim da ditadura franquista havia provocado um pacto no Palácio de Moncloa assinado em 1977 (ano em que este palácio se tornou a sede central da presidência do governo espanhol). O acordo envolveu os extremistas de direita e muitas organizações até então clandestinas. Tal pacto teria selado uma contenção de lado a lado. Algo que lembraria a anistia brasileira de 1979, embora nascida sem o amplo acordo que ocorreu na Espanha. Muitos autores e analistas diziam que o pacto espanhol foi selado sob o “espírito hobbesiano”. Em outras palavras, o medo do retorno à ditadura ou da reação popular que puniria os ditadores teria forjado o autocontrole.

Tudo parecia encaixado nesta teoria até que veio 2011 e milhares de manifestantes cercaram o congresso espanhol sob os gritos de protestos que exigiam que os parlamentares se resignassem nos seus domicílios. “Voltem para casa”, diziam.

Esta explosão de indignação vem sendo retomada pela Geração Z em inúmeros países da Ásia e América (como Peru e Paraguai) e acaba de chegar à Sérvia. Mas, nada se anuncia por aqui. Estamos mais adormecidos que esses países?

O fato é que as pesquisas realizadas em favelas brasileiras indicam um lastro conservador sólido entre seus moradores.

O morro não descerá, como tanto se esperou que ocorresse como protesto popular contra os mandos e desmandos de governantes de direita.

O lastro conservador parece vir justamente da constituição das famílias, a unidade social mais importante das favelas brasileiras. Famílias que têm nas mães seu “cimento”. E, ao que parece, mães que se forjaram nas dificuldades de sobrevivência, nas humilhações e esforços cotidianos para cuidar e proteger sua família. Muitas vezes, marcada pela resignação frente às arbitrariedades diárias, como estratégia de sobrevivência.

Um dia, perguntei a um amigo negro porque eles não reagiam como os negros dos EUA, como ocorreu após a morte de George Floyd. Este amigo deu um sorriso amarelo e disse que as mães e avós de jovens negros os instrui a nunca reagir às provocações dos brancos porque o que recebem é sempre muito mais violência. Os negros sempre acabam perdendo. Este amigo dizia que são educados a trabalhar duro, a tentar o sucesso pelo esforço pessoal e conquistar segurança e prosperidade que elas mesmas, mães e avós, não haviam conseguido.

Não acredito em destino. Mas, penso, a reação popular é bissexta no Brasil pela cultura instalada nas favelas e que as pesquisas vêm revelando. As estratégias de sobrevivência dos pobres brasileiros remontam há séculos de racismo e exploração dos donos do poder.

*Rudá Ricci é sociólogo, trabalha com educação e gestão participativa e preside o Instituto Cultiva

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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