Pedro Carvalhaes: Entre ficções e facções
Entre ficções e facções
Por Pedro Carvalhaes*
Avenida Faria Lima, símbolo por excelência do rentismo brasileiro.
Vendo o orçamento público vorazmente sequestrado pelos ditames do mercado, e diante de uma população cada vez mais ciente das agruras sociais causadas pela especulação parasitária, prejudicando a economia real e concentrando renda, um governante oportunista resolve usar da violência para aumentar sua popularidade com uma ineficaz estratégia contra o problema.
Apesar do rentismo não ser criminalizado, o governante sente-se empoderado para ordenar a ação, por diversos aspectos conjunturais, e pela descoberta de que parte daqueles financistas lavavam dinheiro para o narcotráfico — qualquer semelhança com a realidade recente não é mera coincidência.
Acertados os detalhes sórdidos, policiais fortemente armados, e com sangue nos olhos querendo migrar para as mãos, adentram naqueles espetaculares templos da especulação.
Dada a conhecida selvageria daqueles operadores de ações, visível em qualquer filme que tem como cenário uma bolsa de valores, os policiais não hesitam em chegar atirando .
Moradores do entorno, de suas varandas “gourmet”, correm para se esconder, enquanto jovens brancos de terno são truculentamente alvejados e torturados, independentemente de integrarem ou não alguma facção rentista.
Espalham-se pânico, gritaria e caos.
Alguns engravatados são presos, mas a maior parte é “neutralizada”, jargão policial que, em financês, poderia ser traduzido como “entrar em default”.
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Ao final da ação, sobre o asfalto da famosa avenida, mães brancas choram sobre os corpos de seus filhos, igualmente brancos — a não ser pelos hematomas roxos e pelo vermelho do sangue que tinge suas camisas de puro linho, e seus dorsos.
A revolta toma conta dos “Faria Limers” sobreviventes, e de seu entorno.
Argumenta-se que a maioria dos “presuntos” só se rendeu ao rentismo pela promessa de dinheiro fácil e de “status”.
“Verdadeiros inocentes úteis”, lamenta-se em uníssono na cena do crime, agora repleta de corpos sem vida e enfileirados — honrando a tradição tão paulistana de fazer fila, até mesmo depois da morte, no mórbido caso em questão.
Parte da sociedade acha aquilo tudo uma barbárie.
Outra, desprovida de senso humanístico, e massivamente bombardeada por informações, nem sempre verdadeiras, sobre os males do mercado financeiro, tem sua pulsão de morte masturbada pela chacina — e abertamente a comemora nas redes.
Tais comemorações soam como música para o governante por trás daquela violência, e tanto ele quanto seus correligionários políticos passam a se colocar como os únicos capazes de combater a delinquência especulativa — muito embora a controversa operação , na prática, em nada ajudará a eliminar o rentismo, seja por falta de inteligência no seu planejamento, seja pela alta lucratividade especulação , ainda que para poucos.
Voltemos à realidade. O relato acima, evidentemente, é distópico.
Mesmo com todos os defeitos do rentismo, o Estado jamais poderia atacá-lo dessa forma, seja por razões humanísticas (rentista, acredite-se ou não, também é gente), seja por razões jurídicas (o rentismo, embora não raro aja criminosamente, e destrua talvez tantas famílias quanto as drogas, não é crime, em si).
O leitor deste texto, espero, repreenderá moralmente essa pequena ficção, qual seu autor o faz.
Espero também que, ainda fora do terreno da fábula, e dentro do real, o leitor também repreenda, e enfaticamente, a maior chacina já ocorrida em terras fluminenses, e mesmo brasileiras, promovida a mando do governador Cláudio Castro, no último dia 28.
Dezenas de jovens pretos, pobres e periféricos foram mortos, alguns com sinais de tortura, pelas forças policiais que, em tese, deveriam se guiar pelos ditames do Estado de Direito.
Havia criminosos dentre eles? De certo. Mas mesmo estes, a rigor, mereceriam ser tratados com a mesma institucionalidade dispensada a outros delinquentes — por exemplo, os de colarinho e pele brancos.
Quantos outros cidadãos não morreram na ação, porém, apenas por estarem no lugar errado, e na hora errada?
Ou pior: meramente por terem nascido no (e habitarem o ) lugar errado ? (Leia-se o morro, que, ao contrário do asfalto, não costuma ver seus filhos na Faria Lima, a não ser em duro trabalho braçal em benefício de quem prefere deixar o dinheiro trabalhar por si.)
Assusta pensar que muitos brasileiros, porém, não só não repreendem a chacina real, ao contrário do que fariam em relação à fictícia , como também passaram a nutrir ainda maior simpatia pelo governador fluminense e o movimento reacionário que ele integra, e que fez da fileira de jovens corpos negros exposta em praça pública não um infeliz efeito colateral, mas um poderoso e desejado ativo eleitoral.
Chafurdando mais no lamaçal desse movimento, encontraremos agentes de segurança que fazem das armas que lhes garante o Estado não um meio de combater o crime, mas sim de praticá-lo — e no lugar dos criminosos que deveriam combater.
Falo, claro, das milícias que hoje funcionam em perfeita simbiose com certas forças estatais fluminenses, e que são resultado direto de um processo de banalização da violência policial, que passa pelo governo Anthony Garotinho (quando matar passou a render adicional de produtividade para policiais), extende-se até o governo Sérgio Cabral (com o fracasso das Unidades de Polícia Pacificadora), mas que tem raízes tanto em décadas de ditadura militar, quanto em séculos de violência colonial e escravocrata.
Não é exagero supor que, mais do que o mero combate ao narcotráfico faccionado (gravíssimo, crescente e inegável problema), ou mesmo a conquista do eleitorado reacionário, a chacina que se viu no Rio objetiva talvez não eliminar, mas redirecionar os lucros do mercado de entorpecentes para membros e ex-membros das forças de segurança fluminenses — e de seus tentáculos na política.
A contraproducente obsessão das instituições de segurança fluminenses em perseguir não o rastro do dinheiro que desbarataria o narcotráfico, mas o paradeiro dos líderes das facções, cujas prisões poderiam neutralizar seus comandos sem sacrificar seus lucrativos esquemas (deixando-os intocáveis e já montados para outras lideranças), levanta suspeitas.
Ainda no campo da distorção da finalidade da “operação” de Castro, há quem veja nela uma tentativa de levar o campo progressista a cair na armadilha de subestimar o horror do narcotráfico faccionado, municiando a extrema-direita para distorcer e instrumentalizar o discurso da segurança pública — e, ao mesmo tempo, dando ao governo Trump um pretexto para jogar o Brasil na sua farsesca cruzada contra as drogas vindas da América Latina, mera desculpa para legitimação do imperialismo de sempre.
(A propósito, nunca é demais lembrar que foi justamente a facilitação da aquisição de armas de fogo, no desgoverno Bolsonaro, que ajudou a robustecer o arsenal bélico do crime organizado, de farda ou de chinelos).
Tenha o fim que tenha, é inegável que o massacre de Cláudio Castro (que, com mais de 100 mortes, superou em número de mortos o do Carandiru) foi um retumbante fracasso sob a ótica da segurança pública — a não ser na lógica perversa, pervertida e irresponsável do governador, que classificou a operação como um “sucesso”.
O narcotráfico, faccionado ou milicianizado, continuará. A guerra entre facções criminosas, fardadas ou não, continuará.
E a insegurança que assola estruturalmente o Rio de Janeiro, e que atinge , de modo diverso, as mais diferentes classes sociais, prosseguirá.
Acreditar que o contrário vai se dar é tão pueril quanto acreditar em contos de fadas — ou, num pertinente trocadilho, de fardas.
Considerar aceitável o que se deu na capital fluminense é o mesmo que desumanizar não apenas os criminosos eventualmente abatidos ou capturados, ou mesmo os policiais que perderam suas vidas naquela estupidez, mas toda aquela população periférica que, por razões socioeconômicas óbvias, é obrigada a ser não “conivente”, mas “convivente” com o narcotráfico.
(Falamos, evidentemente, de uma população em sua maioria negra, descendente dos escravizados que conquistaram a liberdade, mas não a dignidade que lhes permitisse condições para sair do morro.)
A violência estatal num território racializado, em que predomina uma população preta, pobre e periférica, tende a ser perversamente banalizada pelo inconsciente coletivo de uma sociedade estruturalmente racista, que até hoje não superou por completo o fim da escravidão.
Assim, em última instância, a presença do narcotráfico nessas áreas , bem como da violência trazida por ele, funciona como um pretexto para , pela força, impedir que seus habitantes se rebelem contra um Estado que, ao fim e ao cabo, defende uma ordem socioeconômica injusta que precisa controlar/subjugar essas pessoas para a manutenção do “status quo” — e dos privilégios que este garante a alguns que moral longe dali , no asfalto.
A fileira de corpos negros exposta em praça pública, estampada em jornais do Brasil e do mundo, causando muito menos indignação do que deveria, e até mesmo celebração, é a prova cabal de que, nas nossas periferias e nos nossos inconscientes, a escravidão e a ditadura militar ainda resistem.
Se o mesmo que se deu na periferia carioca se desse na Faria Lima (que, vale relembrar e frisar, tem comprovadas ligações com o narcotráfico do PCC, como bem demonstrou recente e eficiente operação conjunta de inteligência), sem dúvida a repreensão popular à barbárie seria praticamente uma unanimidade.
A chacina de Cláudio Castro, e a indiferença/apoio de tantos a ela, mostra que o Rio de Janeiro e o Brasil ainda têm um longo caminho para alcançar a mais mínima civilidade.
Um eventual final feliz para essa triste história toda é uma incógnita, que depende de instituições de segurança pública capazes de agir com legalidade e inteligência, além de uma população consciente o suficiente para não mais eleger Cláudios Castros e afins.
A única certeza por ora exposta em público, e tão nua quanto os cadáveres despidos e enfileirados depois do morticínio carioca, é a de que a saudosa cantora Elza Soares estava certíssima ao cantar que “a carne mais barata do mercado é a carne negra.”
*Pedro Carvalhaes é graduado em Direito pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e roteirista.
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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Publicação de: Viomundo
