Pedro Carvalhaes: Devagar com o andor identitário — que a Carta é de barro

Por Pedro Carvalhaes*

Com o anúncio da aposentadoria precoce de Luís Roberto Barroso, ministro do STF, diversas personalidades e grupos, alguns organicamente de esquerda, e outros meramente partidários do liberalismo identitário, têm feito campanha para que o presidente Lula indique uma mulher negra ao STF.

A luta feminista e antirracista, principalmente num país em que a mulher negra é historicamente a figura identitária mais oprimida pelas mazelas estruturais vigentes, é absolutamente necessária e urgente.

Uma mulher negra na nossa mais alta corte, pela primeira vez, seria sem dúvida um marco simbólico do combate ao racismo e à misoginia institucionais do Judiciário, para além de um importante passo para uma melhor representatividade negra e feminina, nos espaços públicos de poder.

O Brasil é um país de maioria afrodescendente, maioria formada a partir de africanos escravizados e sequestrados em massa de seu continente nativo (sendo submetidos às mais degradantes condições, e subjugados por leis e políticas que, por séculos, impediram sua emancipação e cidadania plenas, mesmo após o fim da escravidão formal).

Por isso, ascender mulheres negras ao poder é mais do que mera reparação: é um imperativo ético.

O Brasil e suas riquezas, inclusive culturais, foram erguidos principalmente com o sangue e suor dos negros descendentes de escravizados, sem que estes recebessem o devido quinhão econômico pelas suas contribuições.

Até hoje, a renda média dos brasileiros afrodescendentes é inferior à dos brancos.

Em regra, esses cidadãos a quem tanto deve o País foram gerados e criados por mulheres negras — e considerável parte deles foi/é constituída por afrodescendentes femininas.

Trazer uma mulher negra para o Supremo Tribunal seria, ademais, honrar a tradição matriarcal de tribos e reinos africanos, que produziu figuras históricas como a Rainha Njinga, símbolo do anticolonialismo angolano.

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Essa mesma tradição fomentou teorias como o “mulherismo africana”, que busca enxergar o feminismo sob a ótica desses valores ancestrais — tão distintos do padrão patriarcal de nossos colonizadores.

O tema da ressignificação da mulher negra, tornando-a uma figura com poder, inclusive no inconsciente coletivo, é de fato premente, não só Brasil.

Um diversificado número de produções audiovisuais dos EUA, berço do identitarismo, tem sistemática e positivamente retratado a mulher negra em posições de mando e reconhecimento —que em muito a distanciam da submissa escravizada Mammy, interpretada magistralmente pela “oscarizada” Hattie McDaniel, em E o Vento Levou.

Por aqui, o remake da novela Vale Tudo foi bastante criticado por, apesar de ter a antológica heroína Raquel Acioly interpretada por Taís Araújo, ter subvertido seu arco dramático, de modo a fazê-la recair no estereótipo da negra sofrida e sobrevivente — para além de reduzi-la, no enredo, a uma figura secundária.

Ocorre que, a bem da verdade, o identitarismo não pode ser enxergado sem que se desnude sua real face: a de um projeto que, ao fim e ao cabo, objetiva acelerar o processo de atomização da sociedade, nublando a inexorável luta de classes, e implementado, em prol do imperialismo plutocrata e rentista, a velha prática colonial de dividir para reinar — no caso atual, a divisão da classe trabalhadora em identidades que a subdividem internamente, como cor, sexo, orientação sexual, identidade de gênero e religião; por mais que tais divisões existam, com suas respectivas vicissitudes, elas não eliminam o fato ser o pertencimento ao proletariado o principal fator de caracterização da maioria dos cidadãos.

Assim, uma classe trabalhadora já com dificuldades de se enxergar como tal, em razão de décadas de propaganda neoliberal e individualista, tende a cair na esparrela de que seus anseios de melhoria de vida podem ser satisfeitos com a mera valorização de suas identidades sociais secundárias — sem que se ataque, diretamente, a estrutura socioeconômica que perpetua a desigualdade.

Estando, destarte, desunido, o proletariado deixa de organizar-se como grupo homogêneo, beneficiando a minoria que o explora do topo da pirâmide social, e que instrumentaliza tais ignorância e desmobilização das massas a seu favor.

Por mais que possa haver, por exemplo, mulheres negras em posições pontuais de poder, emulando talvez a política do “negro único”, nenhuma mulher negra será de fato alçada à cidadania plena sem a efetivação de direitos sociais que lhe garantam condições materiais de sobrevivência, no geral.

Temos uma das Constituições mais avançadas do mundo, no tocante aos direitos sociais.

O que precisamos fazer para que esses direitos sejam respeitados e ampliados é, antes de tudo, inserirmos nos espaços de poder pessoas ontologicamente compromissadas com a emancipação da classe trabalhadora.

Num país em que o presidencialismo é de coalização, e em que grande parte do Congresso representa interesses não de seus eleitores, mas de seus financiadores privados, o Judiciário (e, em última instância, o STF) pode ser o fiel da balança entre sermos de fato uma social-democracia, ou uma mera plutocracia disfarçada.

Não são poucos os direitos de minorias que foram conquistados não em função do Executivo ou do Congresso, mas do STF, através de sua interpretação do espírito da Carta Política — não fosse a Corte, por exemplo, dificilmente a homofobia seria criminalizada e igualada, via jurisprudência, ao racismo.

Vivemos um momento de crise cíclica do capitalismo e, por conseguinte, da própria democracia liberal.
A ameaça do autoritarismo e do reacionarismo sobre o Estado Democrático de Direito e seus avanços sociais, seja no Brasil, seja fora, é inegável.

Basta que olhemos para o que o governo Trump vem tentando fazer nos EUA, e o que o governo Bolsonaro quase fez por aqui, com sua tentativa frustrada de golpe.

Não fosse nosso Judiciário, especialmente na figura do ministro Alexandre de Moraes, homem branco, cis e hétero, teríamos talvez perdido a Carta de 1988 e seus avanços sociais, sem que necessariamente ela viesse a ser formalmente abolida.

Ainda hoje, diante de um Congresso não raro venal e repleto de parlamentares reacionários, muito mais do que conservadores, o STF precisa muitas vezes agir com um ativismo com que não teria que agir, fossem outros os tempos e os ventos.

Nesse cenário tormentoso, a Suprema Corte assume importância capital para a proteção das instituições e dos direitos constitucionais, tão necessários para a proteção de diversas minorias e da própria ordem democrática.

Torna-se, assim, revestida de uma importância fulcral, e não apenas protocolar e simbólica — não por acaso o Judiciário tornou-se o grande alvo da internacional reacionária, na sua cruzada para criar esse Frankestein fascistóide chamado de “democracia iliberal”.

O presidente Lula, naturalmente, sabe disso.

Sua ingenuidade ao indicar para o STF Joaquim Barbosa, em função do notório saber jurídico, da reputação ilibada, mas inegavelmente pela sua negritude, voltou-se contra seu próprio primeiro governo, quando da ação do controverso Mensalão, que por pouco não custou-lhe a reeleição.

Não obstante, desde então, incensado pela grande mídia e seus interesses elitistas, o STF tornou-se uma corte sob as luzes da ribalta.

Ministros outros, sejam indicados por Lula, sejam indicados por Dilma, diante da manipulação de seus brios nas manchetes e nos comentários da mídia corporativa, tornaram-se reféns da bajulação da elite e de seus porta-vozes.

Desse processo de cooptação do Judiciário pelo elogio ou ameaça de crítica, vieram Sérgio Moro e a Lava Jato, o golpe contra Dilma e a prisão política de Lula — sem falar no assassinato da reputação de valorosos quadros de esquerda, como José Dirceu e José Genoíno.

Quantos retrocessos para as massas não se originaram dessa instrumentalização do STF pelas forças antipovo?

Quantas minorias, incluindo as mulheres negras, não tiveram suas condições materiais de subsistência e ascensão ameaçadas pela campanha sistemática contra a esquerda que resultou nos desgovernos Temer e Bolsonaro?

É por isso que o Planalto precisa priorizar um nome que, mais do que pertencer a esta ou àquela minoria subrepresentada, tenha envergadura moral e técnica para defender os ideais não do PT, mas da própria Constituição.

Um nome assim, na prática, representaria muito mais para a causa da mulher negra do que uma indicada negra que não tivesse rigorosamente todas as características para cumprir o papel que a democracia espera, atualmente, de um ministro do STF.

Se houver uma jurista negra, de reputação ilibada, notório saber jurídico, com idade acima de 35 anos, e que goze de plena confiança de Lula, no sentido de se adequar ao que se espera de um ministro do STF, na atual quadra histórica, maravilha.

Caso contrário, a indicação de alguém que não pertença a essas minorias, mas que gabarite os requisitos de Lula, por mais que pareça um desserviço à causa da mulher negra no plano simbólico, será uma salvaguarda prática de que os direitos das mesmas serão mantidos e ampliados, através da proteção da estabilidade democrática e constitucional — o que há de ajudar muito mais as mulheres negras a ocuparem seus merecidos lugares de mando, numa sociedade cada vez mais igualitária, representativa e socialmente justa.

*Pedro Carvalhaes é graduado em Direito pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e roteirista.

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Publicação de: Viomundo

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