Paulo Nogueira Batista Jr: Coração, confiança, fé
Coração, confiança, fé
Por Paulo Nogueira Batista Jr.*
Há cerca de 30 anos, passei a escrever com certa periodicidade na imprensa nacional, primeiro na Folha de S.Paulo, depois no Globo e, mais recentemente, aqui na Carta Capital.
Pois bem, mesmo um colunista veterano como eu enfrenta, às vezes, o terrível problema da falta de assunto. Desencorajado ele se debate com esse vazio e procura, em vão, um caminho para escrever.
É possível fazer muita coisa sem o coração, eu sei. Mas escrever não está entre elas. Uma solução é transformar a falta de assunto no assunto mesmo da crônica. E é exatamente o que estou fazendo agora.
Nessa base precária, venci os primeiros parágrafos. Como prosseguir? Uma possibilidade seria voltar a falar da minha obra mais recente, os “Estilhaços”.
Quero que ela circule o mais possível, até porque foi escrita com o coração, com sinceridade e entusiasmo. Isso está longe de ser, claro, garantia de qualidade. Ao contrário, pode ser o caminho para a mais atroz subliteratura.
Sou suspeito, mas não creio que seja o caso. Não se trata, afinal, de um livro improvisado. Foi escrito ao longo de vários anos com esforço, obstinação e predeterminação, pelos caminhos tortuosos do coração. Dos meus livros é o mais pessoal.
Não por acaso, o coração constitui um tema central do livro. O coração, como sede e metáfora de tudo que há de afetivo, impulsivo, impetuoso em nós, domina o livro do começo ao fim. Aparece em todas as suas partes de formas variadas – nos aforismos, nas crônicas, nos contos – sempre valorizado como elemento indispensável da vontade de viver.
A razão não deixa sobreviventes, escrevi em certo momento. Submetida ao crivo implacável da razão, que tudo questiona, solapa e resseca, a frágil vontade de viver corre perigo fatal. E é justamente no coração que ela pode encontrar apoio e refúgio.
Apoie o VIOMUNDO
Repare, leitor ou leitora, que o coração não se opõe à razão, não quer e nem teria condições de substitui-la. O que ele pode e deve pretender é barrar o absolutismo da razão, isto é, a sua tendência a invadir todos os aspectos e recantos da vida. Em outra palavras, o que cabe ao coração é suspender a descrença que a razão permanentemente suscita. Isso está a seu alcance – e já é muito.
A lucidez de não ter lucidez alguma, escrevi em outro momento. A vontade de viver, sempre vulnerável, sempre ameaçada, precisa de diferentes camadas de proteção. Um indivíduo permanentemente lúcido pode ser comparado a alguém que não consegue dormir. Não dorme, não sonha, não se renova. E caminha assim para uma vida agoniada e uma morte prematura.
Sem a loucura, indagou Fernando Pessoa, “o que é o homem mais que a besta sadia, cadáver adiado que procria?” – sem a loucura que dá um sentido à vida, enchendo-a de propósitos e significados misteriosos. Propósitos e significados, que à luz da razão, dificilmente se sustentam.
O mesmo sentimento aparece no seu poema “As Ilhas Afortunadas”:
Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É uma voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutarmos, cala,
Por ter havido escutar.
É só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que elas nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.
São ilhas afortunadas,
São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando
Mas, se vamos despertando
Cala a voz, e há só o mar.
Era o que eu tentava dizer sem o mesmo sucesso – é meio dormindo, sem saber de ouvir, que ouvimos. Mas se vamos despertando e recobrando a lucidez, some “a voz do mar”, portadora de sonhos e esperanças.
Pode-se usar a razão, impulsionada pelo coração, contra a própria razão? Sim, dentro de certos limites. Afinal, como notava Pascal, “o coração tem razões que a própria razão desconhece”.
Veja-se a questão da fé na existência de Deus. O que resulta da aplicação da razão a essa questão fundamental? Aporias, nada mais nada menos. Foi exatamente aqui que desembocou Kant em sua “Crítica da Razão Pura” – nas famosas aporias da razão pura. A razão, em si mesma, quando se move fora do âmbito da experiência possível, isto é, além do tempo e do espaço, patina irremediavelmente e não consegue oferecer respostas às questões metafísicas como a existência ou não de Deus.
Diante dessa incerteza radical, Pascal já dizia, contrapondo-se a Descartes: “Deus é sensível ao coração, não à razão”. Mas esse recurso ao coração apazigua realmente? O coração por acaso oferece a certeza que a razão solapa? Pascal era um atormentado.
Qual o fundamento da fé, afinal? Não são apenas as questões metafísicas que dependem da existência ou não de fé.
Tudo de essencial que nos cerca não exige alguma forma de fé, a sua presença como elemento de sustentação? O amor, por exemplo. É possível amar e ser amado sem segurança, sem confiança, sem fé? Não é corrosiva, talvez fatal, a dúvida que se instala numa relação amorosa?
Precisamos da fé, assim na terra como no céu.
***
Versão resumida desta crônica foi publicada na revista Carta Capital.
*Paulo Nogueira Batista Jr é economista e escritor. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais 10 países em Washington, de 2007 a 2015. Publicou pela Editora LeYa Brasil o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém, segunda edição 2021, e pela Editora Contracorrente o livro Estilhaços, em 2024.
E-mail: [email protected]
Canal YouTube: youtube.nogueirabatista.com.br
Portal: www.nogueirabatista.com.br
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
Leia também
José Luís Fiori: Brasil, Europa, China
Big techs são parte da máquina de guerra dos EUA, alerta pesquisador
Publicação de: Viomundo