Marcelo Zero: Celebração do Dia D, que deveria ser um apelo à paz, tornou-se um grito de guerra
O Dia D e a Paz
Por Marcelo Zero*
Como sempre, o dia da invasão da Normandia foi comemorado em grande estilo. Neste ano, quando se completam 80 anos do “dia D”, as comemorações foram especialmente significativas.
O presidente Biden aproveitou a ocasião para reiterar a visão geopolítica estadunidense, segundo a qual o mundo estaria hoje dividido entre “autocracias” e “democracias”.
Biden também afirmou, como Reagan fizera 40 anos antes, que os EUA e seus aliados têm se de empenhar, mais uma vez, para derrotar as ameaças à democracia e à liberdade. Referiu-se à Ucrânia e atacou diretamente Putin, chamando-o de tirano.
Putin, obviamente, não foi convidado.
Não deixa de ser uma injustiça histórica.
Na imaginação do chamado Ocidente, sempre alimentada por uma pletora de filmes, seriados etc., a derrota de Hitler ocorreu a partir da invasão da Normandia pelas tropas aliadas.
Isso não é, por óbvio, verdade factual.
Muito embora a abertura da frente ocidental tenha acelerado a debacle nazista, Hitler já estava praticamente derrotado no “dia D”.
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Como bem salientou o historiador e jornalista britânico Max Hastings em sua obra “Inferno: The World at War, 1939-1945”, o Exército Vermelho foi “o principal motor da destruição do nazismo”.
Hitler, para quem a busca do lebensraum (espaço vital) no Leste era essencial, enviou o grosso de todas as suas tropas para a invasão da União Soviética, que os nazistas viam como o grande inimigo estratégico.
Tratou-se da Operação Barbarosa, a qual acabou envolvendo ao longo do tempo, quase 4 milhões de soldados, 600 mil veículos e até 600 mil cavalos (sim, cavalos também).
As mais fidedignas fontes históricas estimam que a Alemanha nazista perdeu entre 75% e 80% de todos seus exércitos e dos seus equipamentos militares na terrível “frente oriental”.
Com efeito, quando ocorreu a invasão da Normandia, muita coisa já tinha acontecido na frente oriental.
Os soviéticos já tinham, por exemplo conseguido parar a ofensiva nazista na sangrenta Batalha de Moscou.
Em 2 de fevereiro de 1943, as forças nazistas sofreram uma enorme derrota militar em Stalingrado, batalha que todos os analistas sérios consideram como um grande ponto de inflexão do conflito, o começo praticamente irreversível da debacle nazista.
Só nessa batalha gigantesca, os nazistas perderam cerca de 1, 5 milhão de homens, entre mortos, incapacitados e prisioneiros.
Pouco depois, no verão de 1943, ocorreu a maior batalha militar de todos os tempos: a Batalha de Kursk, vencida pela União Soviética, a qual envolveu cerca de 9 mil tanques, além de inúmeros outros equipamentos bélicos.
A partir daquele momento, as forças nazistas perderam qualquer capacidade ofensiva na frente oriental, e passaram a uma estratégia defensiva até o final da guerra.
A então União Soviética pagou, de longe, o preço mais duro. Embora os números não sejam exatos, estima-se que 26 milhões de cidadãos soviéticos morreram durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo cerca de 11 milhões de soldados.
O país foi devastado.
O próprio Eisenhower escreveu em suas memórias que:
Quando voamos para a Rússia, em 1945, não vi nenhuma casa em pé situada entre as fronteiras ocidentais do país e a área ao redor de Moscou. Através desta região invadida, disse-me o marechal Zhukov, foram mortas tantas mulheres e crianças, e tantos idosos, que o governo russo nunca seria capaz de estimar o total.
Não há termo de comparação. Os EUA perderam 141 mil soldados, no cenário europeu. Os soviéticos, como salientado, perderam ao redor 11 milhões. Para cada soldado estadunidense morto no front europeu, morreram 78 soviéticos.
Especificamente na invasão da Normandia, faleceram 4.400 soldados aliados, incluindo 2.500 estadunidenses. Perda de vidas a se lamentar, é claro, mas cujos números empalidecem, em comparação à catástrofe sofrida pelo povo soviético.
Não obstante, o Ocidente é recalcitrante em reconhecer o papel decisivo da União Soviética na derrota do nazismo.
O Ocidente também é recalcitrante em reconhecer os vínculos históricos do nacionalismo ucraniano com o nazismo, algo que se reflete, hoje, infelizmente, em alguns setores do governo e da sociedade da Ucrânia.
O que mais chamou a atenção na cerimônia do “dia D”, no entanto, foi o chamamento de Biden à guerra.
Embora o discurso tenha sido dirigido também para o público interno, com uma evidente crítica a Trump e aos republicanos por sua “falta de empenho” e atraso no apoio à Ucrânia, o centro do pronunciamento foi a reiteração, como dissemos, da visão simplista, maniqueísta e belicosa da nova Guerra Fria, na qual não há muito espaço, se algum, para negociações e para a paz.
Ante o fracasso das sanções contra a Rússia, da contraofensiva ucraniana e frente ao cenário provável de um colapso militar ucraniano, o Ocidente está redobrando suas apostas na guerra.
A liberação do uso ofensivo das armas cedidas, o envio de caças de guerra, como os Mirage 2000 de Macron, e o possível envolvimento de tropas de países da Otan em solo ucraniano estão elevando tremendamente a temperatura do conflito, que ameaça tornar-se uma guerra ampla entre potências nucleares.
A comemoração do “dia D”, que deveria ser uma advertência contra os horrores dos conflitos bélicos e um apelo à paz, tornou-se, novamente, 40 anos após o discurso de Reagan, um grito de guerra.
Lamentável.
*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais
Publicação de: Viomundo