José do Vale: A estratégia global da China, segundo o cônsul-geral em São Paulo
Por José do Vale Pinheiro Feitosa*
Em artigo publicado em 5 de janeiro de 2024, no qual defende a posição estratégica da China na ordem mundial em evolução, o cônsul-geral chinês em São Paulo, Yun Peng, aborda o plano global do seu país com base no conceito de Futuro Compartilhado.
Em resumo, ele escreve o seguinte sobre a Comunidade de Futuro Compartilhado:
Objetivo: construir um mundo aberto, inclusivo, limpo, belo, com paz duradoura, segurança universal e prosperidade compartilhada.
Um mundo multipolar equitativo ordenado para uma globalização econômica universalmente benéfica e inclusiva.
Princípio orientador: praticar os valores comuns da humanidade; a base fundamental reside na criação de relações internacionais de novo tipo.
Caminho: promover governança global caraterizada por consulta extensiva e contribuição conjunta para benefícios compartilhados.
Estrutura produtiva: globalização econômica universalmente benéfica, inclusiva (atenda às necessidades comuns de todos os países, sobretudo daqueles em desenvolvimento) e que lida adequadamente com os desequilíbrios de desenvolvimento entre os países e internamente a eles, devido à alocação global de recursos.
Isso implica liberalização e facilitação do comércio e investimento, superação dos problemas estruturais que dificultam o desenvolvimento saudável da economia mundial e globalização econômica mais aberta, inclusiva, equilibrada e benéfica para todos.
Contradições da estrutura: reversão da globalização, abuso do conceito de “segurança”, unilateralismo e protecionismo em todas as suas formas.
Principal programa estruturante: desenvolvimento global, iniciativa para a segurança global e iniciativa para a civilização global.
Plataforma de ação: cooperação de alta qualidade a partir da Iniciativa Cinturão e Rota.
Assim a globalização de investimento e comércio mundial seria a estrutura produtiva que nos levaria a um Futuro Compartilhado.
Não há qualquer referência a uma perspectiva socialista dos meios de produção.
Tampouco explora a contradição entre capital e trabalho, cuja expressão mais contundente é o sistema financeiro internacional baseado em sistemas monetários das grandes economias.
A raiz fundamental é o lucro, tanto nas escolhas de investimento quanto em relação a apropriação destes.
Isso nos remete à falácia da “racionalidade” das livres escolhas dos sistemas de economias liberais, onde supostamente a somatória das necessidades e da busca de suas satisfações zeraria as decisões em favor de todos.
O que temos é a concentração dos meios de produção na mão de poucos (terras, minérios, água, indústrias, capitais etc.), levando a “decisões” irracionais com base no “melhor resultado em lucro”.
Resultado: oligopólios, obsolescências programadas, consumismo, esquecimento de produtos populares, de medicamentos e vacinas de doenças de pobres. entre outras consequências.
A concentração de renda e capitais provoca danos imensos aos meios de vida das populações (habitações, transporte, alimentos, vestimentas, água, saneamento, etc.), à autonomia humana e ao progresso pessoal (saúde, educação, cultura, lazer, etc.).
Isso acontece por várias “necessidades” decorrentes da concentração de renda e do jogo de controle de capitais:
1. jogatina aleatória de capitais, formação de grupos de controle de capitais (fundos, máfias, milícias, etc.);
2. “pressão imperial (ou nacional de natureza neocolonial) com forças armadas e moeda controlando a livre iniciativa e a autonomia dos povos;
3. “identidade de classe” que agrupa seres humanos por várias gerações, criando privilégios seculares;
4. apropriação e controle das forças produtivas (ciência e tecnologia, comunicações, transporte de mercadorias) e, finalmente, o controle da superestrutura cultural e de justiça.
Acreditamos que qualquer iniciativa civilizatória de natureza global há de enfrentar este modelo de economia capitalista que, por mais liberal seja, sempre degenera para o controle e a ditadura decorrente desta concentração. A consequência da concentração de capitais é, na verdade, a ditadura de poucos sobre a maioria).
A natureza deste sistema é a corrupção civilizatória, impactando globalmente a estrutura e os fluxos dos sistemas naturais do planeta, promovendo a exploração do ser humano, levando a humanidade ao desígnio ontológico do seu fim, seja por falta de significado existencial ou por escassez essencial em razão de concentração de poderes que resultam em degenerações.
Acreditamos que essa abordagem funcional do Futuro Compartilhado não resultará em igualdade de oportunidades, pois reconstruir “rotas de mercadoria” não significa revolucionar os sistemas de produção dessas mercadorias e, menos ainda, o seu consumo pela humanidade.
Do mesmo modo, é importante salientar que esta crítica é ao artigo do cônsul em São Paulo.
Ou seja, não significa analisar o caminho para o socialismo da China e nem a nova ordem mundial.
Significa apenas dizer que, sem apontar as mudanças estruturais nos modos de produção e apropriação do trabalho, a dinâmica do futuro será a repetição do presente.
*José do Vale Pinheiro Feitosa é médico sanitarista.
Publicação de: Viomundo