‘Ter um poema no Enem é uma conquista coletiva de várias cabeças pensando’, diz poeta cearense
Quem fez a prova do ENEM deste ano se deparou com a seguinte frase: “São tantas formas de matar um preto que para alguns sua morte é justificada. Devia tá fazendo coisa errada. Se não era bandido, um dia ia ser. Por ser preto sua morte é defendida. O preto sempre merece morrer”. O trecho é de autoria de Baticum Proletário, poeta, educador, coordenador da Biblioteca Comunitária Okupação, do Sarau Okupação, do Projeto Periferia Vive e produtor do É Sal Festival.
O Brasil de Fato Ceará conversou com o poeta sobre Enem, racismo e trabalho na periferia de Fortaleza. Confira:
Brasil de Fato CE: Quero começar nossa conversa pedindo para você se apresentar. Quem é o Baticum?
Baticum Proletário: E aí pessoal! E aí galera! Na voz aqui Baticum Proletário. É uma grande satisfação, então já começo pedindo licença a todo mundo para estar aqui conversando com vocês. Baticum Proletário sou eu, poeta, arte-educador, educador social, artista, produtor cultural e estamos aí se virando como der e como pode, mas, principalmente, sou o pai da Tainá, de cinco anos. E quem quiser chegar junto para conhecer mais, para contribuir, para ajudar pode falar comigo no Instagram: @baticumproletário que lá a gente tem uma conversa agradável, uma conversar massa.
Qual foi a sensação quando você viu um poema seu na prova do Enem deste ano?
Eu ainda estou surpreso com essa situação do Enem. Quer dizer, desde que a primeira pessoa veio me falar, me dá essa notícia eu ainda estou assim, surpreso, mas, ao mesmo tempo refletindo e analisando tudo isso eu estou muito grato porque essa é uma conquista que não é individual, é uma conquista coletiva porque Baticum Proletário existe porque muita gente chega junto, chegou junto e ainda vai chegar junto para contribuir nessa construção de lutas e de pautas que precisam ser discutidas e debatidas, e de práticas que estão sendo feitas e realizadas, principalmente nas periferias de Fortaleza.
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Então vou reafirmar, ter o poema em uma questão do Enem, estarem falando sobre Baticum Proletário em uma questão do Enem não é apenas uma conquista individual, é uma conquista coletiva, de vários braços, de várias pernas, de várias cabeças que estão pensando, fazendo, realizando juntos muita coisa em Fortaleza. Muita gente se sentindo representada e orgulhosa. Na minha visão, pelo que eu estou vendo das mensagens, pelas conversas que eu estou trocando com a galera, isso serve de estímulo, de incentivo, de apoio para as pessoas. Porque tem muita gente arrasada da sua saúde mental, da sua saúde física e isso serve como, pelo menos, um suspiro para que a galera arranje forças para continuar nessa batalha. Mas é que eu digo para todo mundo: nada a gente consegue sozinho. É tudo uma construção coletiva.
Saímos há pouco do Novembro Negro e esse seu poema fala sobre os crimes contra a população negra. Queria que você falasse sobre a relação entre essas realidades e o seu trabalho.
Falar sobre o Novembro Negro, sobre a relação que existe desse poema, do trabalho que a gente faz com essa questão racial é muito necessário e importante porque nas comunidade que a gente atua, que a gente realiza nossas atividades artísticas e culturais. Existe uma população negra, existe uma população vulnerável que necessita urgentemente ser acolhida, ser reparada socialmente por tudo que o nosso povo já passou neste lugar chamado Brasil. Existe uma necessidade urgente, são crianças, adolescentes, jovens, adultos, pessoas idosas que, infelizmente, por conta da nossa realidade social estrutural colocada pelo capitalismo, que permanecem sempre no mesmo ciclo de vida, gerações e gerações que não conseguem sequer quebrar o ciclo relacionado à educação.
É o avô que não conseguiu estudar, ou se estudou fez até a quarta série do ensino fundamental, consequentemente sua mãe não conseguiu e consequentemente essa geração mais nova tem uma escola à disposição, mas não tem interesse, pela questão social, de estar dentro da escola porque não vê perspectiva, porque o sistema capitalista é isso, ele quer cada vez mais massa de manobra, mão de obra disponível e que esteja vendendo sua força de trabalho pelo o mínimo necessário para sobreviver e para continuar nessa mesma situação sempre de exploração.
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Então tem tudo a ver, porque a questão racial é uma questão também estrutural da própria sociedade, de como ela se organiza em cima de uma estrutura maior que é o capitalismo, ela não está separada, assim como a luta da mulher também não está separada, assim como a luta dos nossos povos originários não está separada disso tudo, faz tudo parte de um mesmo combo, um combo que nos atravessa, que nos divide cada vez mais para a gente permanecer somente nas nossas lutas identitárias.
A gente tem que ter a consciência que a gente precisa se unir. Cada um tem suas próprias pautas, mas se a gente for lutar somente pelas nossas próprias pautas, a realidade não vai mudar. Fundamentalmente vai continuar a exploração, essa situação social onde existe o extermínio de uma população, principalmente a população negra e os povos indígenas, que estão sendo massacrados nesse país por conta de uma lógica, de um sistema capitalista que coloca milhões de pessoas como meras mercadorias, então isso tem que acabar.
Você realiza vários trabalhos no bairro do Antônio Bezerra, em Fortaleza. Queria que você falasse um pouco sobre essas ações.
As ações que são feitas na prática, são pensadas, realizadas, desenvolvidas porque para a gente lidar com essa realidade de Fortaleza, onde esse apartheid social que é nítido, mas ao mesmo tempo é camuflado. É algo muito difícil porque existem várias Fortalezas, mas existe, principalmente, duas Fortalezas. Uma Fortaleza que serve para uma população que tem dinheiro e capitalista, que não é a mesma coisa você ter dinheiro e ser capitalista. Uma coisa é você ter dinheiro, ser um empresário, mas que você não pode parar o seu negócio porque se você parar o seu negócio você deixa de existir, outra coisa é você ter o capital realmente, e não precisa trabalhar, então são coisas diferentes, são coisas distintas. Então existe a Fortaleza dessa gente aí e existe as nossas Fortalezas, da maioria da população, que é explorada, que a gente vê isso em cada detalhe, cada lugar que a gente anda. Antônio Bezerra não é diferente disso.
Antônio Bezerra tem uma questão social muito urgente aqui. Realizamos o Sarau Okupação com arte, com cultura, trazendo algumas discussões naquele momento ali sobre a realidade social que a gente vive, aí tem a Biblioteca Comunitária Okupação, que a gente está tentando de todo jeito manter, que é difícil demais manter, e tem o projeto Periferia Vive. Então é muita coisa para a gente lidar.
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Há muito tempo que a gente realiza essas ações, e a maioria delas a gente realiza sem nenhum apoio governamental ou de empresários, porque a gente sabe muito bem porque é que não tem esses apoios. A gente simplesmente não faz as coisas pelo entretenimento, entretenimento pelo entretenimento, ou lazer pelo lazer. Seria massa se a gente vivesse em uma sociedade onde as pessoas pudessem realmente ter entretenimento e ter lazer sem precisar se sujeitar a exploração, mas enquanto isso não acontece a gente tem que fazer o entretenimento junto com a luta social, realizar cultura e arte pensando também uma emancipação dessa exploração que existe na sociedade, por isso que o nome é Okupação.
Você é coordenador da Biblioteca Comunitária Okupação, no bairro Antônio Bezerra, em Fortaleza. Quais os desafios de manter uma biblioteca comunitária?
Os desafios são enormes, chegam até a ser sufocantes as vezes, angustiantes. Desde 2017 que a gente implementou realmente a biblioteca e durante muito tempo eu acordava todo dia querendo desistir. Mas aí pensava que eu enquanto artista, enquanto agente cultural, enquanto trabalhador, não poderia me dar esse privilégio de desistir, porque estou pensando numa luta coletiva, numa construção social. Então se eu penso nisso, eu tenho cada vez mais agregar as pessoas para estarem junto, por mais que elas permaneçam apenas para um evento, por mais que elas permaneçam alguns meses, por mais que elas permaneçam um ano. Não importa o tempo, o que importa é que elas sejam impactadas por essa ideia que a gente tem, por essa prática que eu tenho certeza de que elas vão levar para outros lugares.
O poder público vem contribuindo com espaços como esse?
O que eu digo sempre e muito é: se você não quer ajudar não atrapalhe. É exatamente isso, porque a luta que a gente tem é grande para ter acesso aos editais, porque na minha visão não era para existir edital, era para artistas, grupos e coletivos culturais terem acesso direto aos recursos público sem passar por editais. Existe recurso, existe verba, existe dinheiro, só que existe uma lógica de edital para manter a competitividade. Para manter artistas, coletivos e grupos culturais divididos, é isso? Eu faço uma pergunta para os gestores municipais e estaduais, é isso o que vocês querem? Manter a divisão para que a gente não consiga se unir?
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Então é o que eu digo sempre, não quer ajudar então não atrapalhe, mas cada vez mais a gente tem que ter a consciência de lutar. Se o que existe são editais, a gente quer que cada vez mais sejam incluídos artistas, coletivos e grupos culturais nesses editais e, principalmente, aqueles que realmente, diante de uma lógica capitalista precisam e necessitam ter acesso a esses recursos, que é uma galera muito grande das periferias de Fortaleza que não têm acesso porque existe uma linguagem difícil dos editais e eles são feitos dentro dessa lógica para que a maior parte da galera seja excluída. Então a luta é essa, é para incluir essa galera.
Como vocês vem se fortalecendo?
A questão de se fortalecer é algo muito difícil, muito complicado mesmo porque entra toda essa lógica que sufoca a gente, que deixa a gente preocupado porque a gente pode ficar sem o mínimo que é o ter o que comer ou ter uma casa porque muita gente vive de aluguel. Existe uma realidade muito complicada, muito cruel, muito difícil que é artista em Fortaleza sem ter uma alimentação adequada, sem ter um lugar de moradia adequado, sem ter acesso a cursos, a qualificação, a capacitação.
O fortalecimento é uma luta muito complicada, muito cruel, mas eu não perco a esperança. Não perco mesmo.
Publicação de: Brasil de Fato – Blog