Análise | Lançamento de chapa Lula-Alckmin põe democracia e mobilização no centro do palco
O lançamento da chapa Lula-Alckmin na manhã deste sábado (7), na capital paulista, foi uma demonstração da frente ampla possível de se construir no cenário brasileiro atual. De um lado, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reivindicando o legado dos governos petistas e, de outro, o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin, um interlocutor com segmentos da elite econômico-financeira e de setores mais refratários à esquerda.
Entre os dois, a mudança mais notável em termos de discurso é a do ex-tucano. Sua fala incluiu a palavra “igualdade”, termo solenemente ignorado pelo atual presidente em sua posse, três vezes. Buscou a conciliação entre ideais que não seriam antagônicos, em sua concepção.
“Vamos provar que não há incompatibilidade entre a prosperidade individual e uma sociedade solidária. Vamos provar que a eficiência econômica e a justiça social não são coisas opostas, não permitir que essa falsa dicotomia restrinja a política a um eterno confronto entre liberdade e igualdade”, disse. “A política pode e deve servir de instrumento para a promoção da igualdade sem prejuízo da liberdade. Não há democracia sem liberdade, assim como não há liberdade sem justiça, nem justiça sem igualdade.”
Muitos identificaram (e com razão) nesse trecho do discurso uma referência ao filósofo estadunidense John Rawls, representante de uma vertente liberal cujo ideário privilegia a igualdade de oportunidades, o que por si só já seria um avanço diante do ultraliberalismo defendido por Bolsonaro e por parte da mídia tradicional.
Democracia foi outra palavra bastante presente no discurso de Alckmin. Serviu para justificar a aliança com Lula e também para apontar os perigos institucionais provocados pelo atual governo.
“A democracia é marcada, sim, por disputas. Disputas fazem parte do processo democrático. Mas, acima das disputas, algo mais urgente e relevante se impõe: a defesa da própria democracia”, pontuou. “As próximas eleições guardam uma perigosa peculiaridade: será um grande teste para a nossa democracia. E que ninguém duvide disso: sem Lula, não haverá alternância de poder no país. E sem alternância de poder, não haverá garantias para a nossa democracia.”
O discurso foi importante por representar algo que a dita terceira via (rebatizada pelos veículos tradicionais como “centro democrático”), mesmo com muita proximidade ideológica entre seus postulantes, até agora não conseguiu. Um entendimento entre divergentes. Algo ressaltado também pelo ex-governador ao dizer que “nenhuma divergência do passado, nenhuma diferença no presente, nem as disputas de ontem, nem eventuais discordâncias de hoje ou de amanhã, nada, absolutamente nada, servirá de razão, desculpa ou pretexto para que eu deixe de apoiar e defender, com toda a minha convicção, a volta de Lula à presidência do Brasil”.
O legado e o futuro
Lula, em seu discurso, foi além de seu vice, obviamente. Como na entrevista concedida ao Brasil de Fato, ressaltou a conexão entre os trabalhadores e a recuperação econômica, falando da necessidade de um governo “que contribua para criar melhores empregos, e faça girar a roda da economia”.
“Não é possível que o reajuste da maioria das categorias profissionais fique abaixo da inflação, ao contrário do que acontecia em nossos governos”, destacou. “Não é possível que o salário mínimo continue perdendo poder de compra ano após ano. Nos nossos governos, ele subiu 74% acima da inflação, aumentando o consumo e aquecendo a economia.”
O ex-presidente deu lugar especial aos povos originários, talvez das maiores vítimas do atual governo, e à questão da preservação ambiental. “Defender a nossa soberania é garantir a posse de suas terras aos povos indígenas, que estavam aqui milhares de anos antes da chegada dos portugueses, e que foram capazes de cuidar delas melhor do que ninguém. E que agora estão vendo seus territórios invadidos ilegalmente por garimpeiros, grileiros e madeireiros”, disse.
Assim, apontou a possibilidade de avanço em relação às próprias gestões petistas. A atual conjuntura, de forma paradoxal, propicia um consenso maior dentro da sociedade, inclusive do ponto de vista internacional, já que o descaso histórico do país em relação aos povos originários ganhou contornos mais perversos diante de um governo que promove ativamente o desrespeito aos direitos humanos.
Lula falou ainda do combate à fome, da inflação e da importância da Petrobras e da Eletrobrás. E também acenou ao empresariado ao prometer “criar um ambiente de estabilidade política, econômica e institucional que incentive os empresários a investirem outra vez no Brasil, com garantia de retorno seguro e justo, para eles e para o país”, ressaltando não ter ódio ou ressentimento, a despeito de ter sofrido uma “das maiores perseguições políticas e jurídicas da história deste país”.
De uma forma geral, a fala mostrou seu legado na presidência como o grande ativo para garantir um novo pacto que traga o retorno à normalidade democrática e possibilite um avanço em diversos sentidos. Entre eles, o da participação.
Participação popular
Um dos aspectos que chama a atenção no discurso de Lula, e que ele já relembrou em outras ocasiões, foi a menção aos mecanismos de participação social que existiam nos governos petistas e foram extintos ou reformulados para se tornarem irrelevantes nos governos Temer e Bolsonaro.
“Criamos importantes mesas de negociação e conselhos de participação da sociedade civil junto a todos os ministérios”, destacou. “Dessa extraordinária participação popular nasceram várias políticas públicas que mudaram o Brasil. E agora precisamos de novo mudar o Brasil.”
E terminou o discurso com o que chamou de “conclamação”. “Mais do que um ato político, essa é uma conclamação. Aos homens e mulheres de todas as gerações, todas as classes, todas as religiões, todas as raças, todas as regiões do país. Para reconquistar a democracia e recuperar a soberania.”
A lembrança de Lula sobre o processo participativo e seu chamamento no final de suas falas podem ser discretos no todo do discurso, mas se conectam a um apelo que tem sido recorrente entre dirigentes do campo da esquerda e lideranças de movimentos populares e entidades sindicais: a mobilização social.
Neste campo, a formação e multiplicação de comitês populares se tornou uma prioridade, com objetivos que vão além do espectro eleitoral. Para aqueles que entendem que os ataques de Bolsonaro a instituições como o STF e o TSE vão além do diversionismo e podem significar uma ameaça concreta de ruptura democrática, a mobilização será essencial não somente para garantir o bom andamento do processo eleitoral, mas também para assegurar a posse de um novo governo diante de eventuais turbulências que estão por vir.
Um outro ponto destacado por dirigentes é que, mesmo antes das eleições, um novo governo Lula já está em disputa, dado que o arco de alianças alcança a centro-direita. O discurso do ex-presidente chama parte da militância com bandeiras caras à esquerda como o combate ao racismo estrutural e ao extermínio da juventude negra, à desigualdade de gênero, à LGTBfobia, o apoio à agricultura familiar, entre outros. E os comitês também garantiriam a priorização desses pontos em um futuro governo.
O passado já mostrou o quanto a falta de mobilização acabou sendo crucial para garantir os fundamentos da democracia formal brasileira, que precisaria ainda avançar muito e acabou retrocedendo nos últimos anos. As legendas da esquerda já compreenderam o tamanho do desafio. Resta construir o caminho.
Publicação de: Brasil de Fato – Blog