Marcelo Zero: Nossos vira-latas babam na coleira quando ouvem falar em OCDE
Vira-Latas Salivam nas Coleiras com a OCDE
Por Marcelo Zero*
Bastou a formalização do convite da OCDE para que o Brasil inicie as negociações destinadas ao ingresso naquela entidade para os vira-latas começarem a salivar em abundância.
Essa obsessão provinciana com o ingresso no “clube dos ricos” beira o patético, mas é explorada pelo atual governo como uma demonstração de prestígio e reconhecimento.
Bom, em primeiro lugar, é preciso observar que o convite para as negociações não foi feito apenas ao Brasil, mas também a 5 outros países: Argentina, Peru, Romênia, Bulgária e Croácia.
Esse inédito convite simultâneo a 6 países parece indicar que administração Biden está usando a OCDE como instrumento de cooptação política, em sua luta pelo poder mundial contra China, Rússia e aliados.
A inclusão concomitante de três países do Leste europeu, em particular, demonstra o desejo de expandir a OCDE em direção à Rússia, tal como já se fez com a OTAN.
Portanto, o convite não reflete um “prestígio” atual do Brasil, até mesmo porque esse suposto prestígio, com o governo Bolsonaro, é praticamente nulo. Somos, atualmente, vilões pouco confiáveis. Nossos vira-latas estão com sarna. O convite reflete simplesmente um objetivo geopolítico dos EUA e aliados.
Em segundo lugar, e isso é o mais importante, o convite não vem de graça. O ingresso na OCDE impõe previamente que o país candidato se adeque a uma longa série de exigências.
Tais exigências são de natureza diversa: ambientais, de governança, de combate à corrupção, de educação etc.
Entretanto, as exigências fundamentais são de natureza econômica, ou, melhor dizendo, economia política.
O objetivo político e econômico fundamental da OCDE é o de promover as virtudes da “economia de mercado”, que ela associa indissoluvelmente à “democracia” e aos “direitos humanos”.
Em seu site oficial, constam como suas prioridades atuais “restaurar a confiança no mercado e nas instituições que o fazem funcionar” e “reestabelecer finanças públicas saudáveis como base para o crescimento econômico sustentável”.
Assim, a OCDE é uma organização organicamente comprometida com o neoliberalismo, com a abertura das economias, com o “livre comércio” e com políticas fiscais e monetárias ortodoxas.
Mais do que isso, a OCDE tem um compromisso com o capital financeiro e com o “livre fluxo dos investimentos”, inclusive dos investimentos especulativos.
Esse compromisso está plasmado em dois códigos vinculantes da OCDE: o Code of Liberalisation of Capital Movements e pelo Code of Liberalisation of Current Invisible Operations.
Em linhas gerais, tais códigos determinam que membros da OCDE devem evitar introduzir restrições ou mecanismos de controle do câmbio ou ao uso de fundos por parte de não residentes.
Ativos de não residentes devem ser tratados como nacionais, bem como deve ser permitida a sua imediata liquidação e transferência. Observe-se que tais códigos aplicam-se a serviços financeiros e a transferências intrafirmas.
Pouca gente sabe, mas tais princípios de liberalização de movimentos de capitais, inclusive dos capitais financeiros e especulativos, foram introduzidos nos famosos acordos de promoção e proteção recíproca de investimentos (APPIs) que circularam no Congresso Nacional, na década de 1990.
Esses acordos bilaterais de promoção e proteção recíproca de investimentos, firmados com base no modelo da OCDE, pretendiam introduzir, no ordenamento jurídico interno do Brasil, novas regras relativas à admissão, proteção e promoção de investimentos estrangeiros.
De um modo geral, essas novas regras visavam liberar ao máximo a introdução e movimentação de investimentos externos no país, inclusive no que se refere à transferência para o exterior de capitais especulativos.
Deve-se ter em mente que tais acordos bilaterais eram de todo semelhantes ao finado MAI (Multilateral Agreement on Investment) e ao capítulo sobre investimentos do NAFTA.
Todos eles tendem a expandir sobremaneira os “direitos” dos investidores estrangeiros e a limitar a capacidade dos Estados de controlar o capital internacional, conforme o interesse público.
Ressalte-se que o governo brasileiro de FHC assinou 16 acordos desse tipo com diversos países (Alemanha, França, Itália, Suíça, Reino Unido, Finlândia, Países Baixos, Portugal, Chile, etc.). Tais acordos só não foram aprovados em sua forma original graças à ação do PT e da oposição em geral, no Congresso Nacional.
Os principais pontos questionáveis dos acordos de promoção e proteção recíproca de investimentos da OCDE eram:
a) Definição demasiadamente abrangente de investimentos.
Os acordos não distinguiam investimentos especulativos de curto prazo e investimentos diretos de longo prazo.
Ademais, eles estipulavam que todas as formas de investimentos têm de ser protegidas da mesma forma. Assim sendo, eles tendiam a limitar a capacidade do Estado de estabelecer políticas diferenciadas de atração e tratamento dos investimentos, conforme a sua natureza e os interesses do País.
b) Imposição da cláusula de tratamento nacional, sem o necessário estabelecimento de exceções e a sua conveniente qualificação.
Embora a CF não distinga mais entre empresa nacional e estrangeira, seria conveniente que o País pudesse implementar políticas que favorecessem a formação de capital nacional e o desenvolvimento tecnológico em setores estratégicos.
Os acordos, tal como estavam formulados, impunham o tratamento nacional para a empresa estrangeira sem exigir, em contrapartida, o cumprimento de quaisquer condições. Além disso, eles não estabelecem a possibilidade de exceções, mesmo que temporárias.
c) Indenização em moeda livremente conversível.
Os acordos impunham a indenização em moeda livremente conversível, em quaisquer casos de desapropriação do investimento em função do interesse público. Pois bem, a CF determina explicitamente que, nos casos de desapropriação de imóveis rurais e urbanos, a indenização será paga em títulos da dívida agrária (artigos 182 e 184).
d) Livre transferência dos resultados dos investimentos.
Este era um ponto extremamente polêmico. Os acordos previam a livre transferência para o exterior dos resultados dos investimentos, sem exceções e em quaisquer circunstâncias. Tal dispositivo contrariava lei nacional em vigor (Lei nº 4.390, de 29/08/64), segundo a qual o País tem o direito de impor controle de remessa lucros na eventualidade em que haja grave desequilíbrio cambial.
Ademais, o artigo 172 da CF determina que lei ordinária deverá controlar a remessa de lucros e incentivar os reinvestimentos.
Saliente-se que durante a discussão do finado MAI, vários países desenvolvidos propuseram salvaguardas relativas à livre transferência. No nosso entendimento, o Brasil deve dispor de mecanismos que protejam o seu balanço de pagamentos da remessa de lucros abusiva atualmente praticada por empresas estrangeiras.
e) Imposição de arbitragens internacionais, sempre que solicitadas unilateralmente pelo investidor estrangeiro.
Trata-se de cláusula muito semelhante à existente no NAFTA (o famigerado Capítulo 11). Pelo seu texto, o investidor estrangeiro teria o direito de submeter qualquer querela jurídica em relação aos seus investimentos a uma arbitragem internacional, sem passar pelos tribunais nacionais, o que é negado aos investidores nacionais.
Saliente-se que, pelas cláusulas constantes nos APPIs, o Estado é obrigado a aceitar a arbitragem internacional, sempre que solicitada investidor. Evidentemente, tal dispositivo é muito perigoso e tende a internacionalizar o regime jurídico dos investimentos.
f) Direito à Indenização por ações do Estado que comprometam o desempenho das empresas.
Além dos outros pontos mencionados, alguns acordos, como o Acordo Brasil/Alemanha, continham pontos que estipulavam que o investidor poderia exigir indenização sempre que houvesse alguma ação estatal que comprometesse a “substância econômica” da sua empresa.
Tratava-se de cláusula muito semelhante à existente no NAFTA. Mediante tal dispositivo, as empresas podem exigir indenizações sempre que se julgarem prejudicadas por quaisquer ações do Estado, como, por exemplo: novas regras ou leis ambientais, novas exigências trabalhistas ou de seguridade social, modificações nas políticas de investimentos, etc.
Destaque-se que as empresas norte-americanas têm se utilizado abundantemente dessa cláusula para impedir a implementação de controles estatais às suas ações muitas vezes predatórias no México e no Canadá.
Hoje em dia, algumas empresas e países estão ameaçando se utilizar de cláusulas semelhantes para exigir indenizações face às demandas para se diminuir a produção de energia com base em carvão, petróleo e gás.
Por exemplo, o Energy Charter Treaty (ECT) protege os investidores em energia e permite que as empresas de energia processem governos se seus lucros forem prejudicados por mudanças nas políticas – incluindo para o combate à crise climática.
Com a eventual entrada do Brasil na OCDE, o país provavelmente será obrigado a comprometer-se com esse tipo de cláusulas, já rejeitadas pelo Congresso Nacional, na década de 1990.
A questão essencial que se coloca, por conseguinte, é se vale a pena o Brasil entrar na OCDE.
Não, não vale.
Os supostos benefícios, como o “selo de qualidade” para os investidores, não servem de muito.
A Grécia é membro fundador da OCDE e isso não a impediu de ser jogada à pior depressão da sua história pelos próprios membros da OCDE, sob a liderança da Alemanha.
O México, que faz parte da OCDE há muito tempo (1994), além de ser membro do NAFTA e de ter assinado cerca de 35 outros acordos de livre comércio, continua um país dependente e com sérios problemas econômicos e sociais.
O que dá prestígio e “selo de qualidade” a um país é crescer, gerar bons empregos, promover a educação de seu povo, distribuir renda, eliminar a miséria, proteger o meio ambiente, promover a democracia e os direitos humanos e ter uma política externa independente e soberana.
Uma cadeira na OCDE, no luxuoso Château de la Muette, construído pelo Barão de Rotschild e situado no Bois de Boulogne, em Paris, pode ter algum efeito propagandístico num país de jecas colonizados, mas, na prática, não significa nada e pode ter, ao contrário, efeito contraproducente para o desenvolvimento nacional.
Por isso, na época de Lula, quando o Brasil tinha grande prestígio, o país recusou o convite para entrar na organização.
Com efeito, em 2007, o então secretário-geral da OCDE, Angel Gurria, iniciou, com alguma sofreguidão, agregue-se, uma consulta formal para o Brasil entrar na organização. Guido Mantega, polidamente, manifestou a ausência de interesse do Brasil.
De mais a mais, o Brasil já coopera ativamente com o OCDE em áreas de seu interesse (como educação, por exemplo) e firmou o amplo “Acordo de Cooperação entre a República Federativa do Brasil e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, assinado em Paris, em 3 de junho de 2015”, ratificado em 2019.
Considere-se, nesse contexto, que a melhor maneira de se blindar a escolha fatídica pelo neoliberalismo, a ortodoxia econômica e a dependência é via acordos internacionais. Com tal subterfúgio, pode-se congelar políticas econômicas ortodoxas e torná-las infensas às mudanças democráticas.
É algo que funcionaria melhor que o ridículo teto de gastos constitucional, essa jabuticaba beócia e impraticável.
É por isso que nossos vira-latas babam na coleira quando ouvem falar em OCDE e acordos de livre comércio de “nova geração”.
Não é apenas colonialismo mental. É aposta em economia política ortodoxa e em dependência.
Caso o Brasil seja aprovado para entrar na OCDE, às custas de boa parte de sua soberania econômica, abanarão o rabo em Paris e se coçarão alegremente no Marché aux puces.
*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais
Publicação de: Viomundo